Peixes híbridos são pouco entendidos. Pelo que conheço das discussões, existem pessoas a favor, pessoas contra, mas existem vieses que quase ninguém considera ou mesmo sabe que existem.
Vamos começar pelo simples, por aquilo que se eu colocar na internet eu encontro de cara: definição de híbrido.
(fonte: https://www.dicio.com.br/hibrido/)
- [Genética] Que foi alvo do cruzamento entre espécies, raças, variedades ou gêneros distintos, sendo seu descendente (no caso de um animal) geralmente infértil.
- [Por Extensão] Que possui progenitores cujos genótipos, composição genética, são diferentes; mestiço: indivíduo híbrido.
Hibridização, hibridismo, hibridação. Por mais que existam formas preferidas de se utilizar a palavra, dependendo da área do conhecimento, seja na linguística, seja na química ou na biologia, o que importa é entender que isso se refere à junção de duas coisas diferentes, natural ou artificialmente. Para nós aqui, que falamos de peixes, hibridação ocorre quando duas espécies taxonomicamente distintas copulam (ou são cruzadas em laboratório) e geram descendentes que são a mistura delas, os quais, por sua vez, não possuem classificação taxonômica alguma.
Hibridação natural
Há um caso dos ciclídeos africanos – CAs conchículas do Tanganyika que pode ilustrar bem uma possibilidade de ocorrer hibridação natural entre espécies: Lamprologus callipterus e Neolamprolugus brevis. O primeiro é uma espécie cujo porte permite carregar e reunir conchas de gastrópodes numa espécie de “cama nupcial”, para onde são atraídas as fêmeas. Todavia, não apenas as fêmeas de L. callipterus se interessam por tal construção, mas sim, diversas outras espécies. Nesta lacuna, entra o minúsculo e simpático N. brevis, que também usa o local para se reproduzir. Como também é um conchícula, ele chega, escolhe uma concha e passa a chamar de sua. Trata-se de uma espécie pacífica e de baixa voracidade, no que diz respeito a predar filhotes de outros, qualidades reconhecidas até mesmo pelo dono do terreno, que não o expulsa. Acontece que, numa convivência tão próxima, por vezes, o L. callipterus, pode fecundar ovos de brevis que estejam dentro das conchas de sua cama. Por que?
Incapaz de entrar numa das conchas que trouxe, por causa do tamanho (apenas a fêmea desta espécie fica lá dentro), o L. callipterus lança os espermatozoides para dentro, fecundando o que lá estiver. Imagine que dentro de um estado de frenesi reprodutivo, o peixe não quer saber se a nadadeira caudal que viu era a de uma de suas fêmeas ou de outra qualquer.
Híbridos advindos dessa “desatenção” não são incomuns, porém, especialmente falando do lago Tanganyika, muito antigo e com os nichos ecológicos muito bem ocupados, isso não é capaz de acabar com as espécies envolvidas. As pequenas diferenças apresentadas pela “nova espécie” podem fazer muita diferença e representar uma barreira reprodutiva. É plausível dizer que as fêmeas de callipterus excluam os machos híbridos, por eles não alcançarem os tamanhos exigidos (força para carregar conchas e para intimidar adversários) ou terem colorações não aceitas.
Para completar a capacidade de entendimento do que estou falando, cabe lembrar que o processo de radiação (surgimento) de espécies nos ciclídeos teve, em sua terceira etapa, uma peculiar e importantíssima questão: seleção sexual. Nesta fase, a pressão reprodutiva resultou na diversificação da coloração dos machos, enquanto a maioria das outras características morfológicas, conquistadas em etapas anteriores de evolução, permaneceram praticamente inalteradas. A partir daí, machos começaram a ser capazes de diferenciar fêmeas e machos da mesma espécie apenas por essa característica visual; o recíproco, e mais crucial, é válido para as fêmeas, elas passaram a decidir se cruzariam ou não com os machos, baseadas na escolha pela cor.
A importância do que os ciclídeos veem é tão visceral que quando ela é “enganada”, a fêmea retrocede nos quesitos para a escolha – mais relacionados com a primeira etapa de evolução (radiação e espécies) que é onde as variações de forma e comportamento estavam atuando. Experimentos feitos com ciclídeos mostraram que quando expostos à luz monocromática, a qual impede a correta captura de informação de cor pelos olhos do peixe, elas passam a preferir aqueles peixes maiores e mais agressivos. Quer entender isso num caso mais prático? Vamos lá.
Primeiro, é importante entender que “enganar” significa, para os nossos propósitos aqui, algo como uma força aplicada sobre o indivíduo que o impeça de dar continuidade aquilo que a sua natureza o condiciona. Podemos chamar também de estresse. Visto isso, vamos para o lago africano Vitória.
Diferente do Tanganyika, o Vitória é um lago novo e altamente antropizado (sofre impactos degradantes pela ação humana: poluentes, sedimentos em suspensão, pesca desordenada e invasão de espécies exóticas), o que o torna mais suscetível a não conseguir responder à agressão. Espécies de ciclídeos nesse lago comportam-se tal qual mostrou o experimento, nas águas turvas e doentes, fêmeas escolhem machos maiores e mais agressivos, não necessariamente dentro da espécie. Este é mais um caso de hibridismo ocorrendo na natureza, portanto, com bastidores de grande tristeza.
Hibridação no Aquário
Ainda no âmbito dos CAs, trago mais exemplos para ilustrar nosso assunto. Quando falamos de aquário, o “estresse” pode ser até mesmo a questão do confinamento dos peixes. Você pode ter montado o aquário de CAs com todos os recursos recomendados, filtros internos e externos, ração de primeira etc. e ainda assim uma fêmea pode se sentir “sob pressão” e copular com um peixe maior e mais agressivo, que não da espécie dela.
Se você já teve ciclídeos africanos do lago Malawi, deve ter reparado como alguns deles possuem um mesmo padrão de cores, não? Pseudotropheus demasoni Pombo e P. saulosi macho, ambos têm o padrão azul com barras verticais escuras; Maylandia zebra Red Top e Labeotropheus trewavasae Red Top, os dois com cores azuladas e nadadeira dorsal avermelhada.
Da esquerda para direita: Pseudotropheus demasoni Pombo, P. saulosi (macho na esquerda); Maylandia zebra Red Top e Labeotropheus trewavasae Red Top (com barras verticais pouco evidentes)
Não é à toa que muitos dos mantenedores de CAs optam por aquários somente de machos. Primeiro, porque, na maioria das espécies, os indivíduos com cores exuberantes são machos. Segundo, porque fêmeas no aquário promovem o surgimento do comportamento de cópula, onde peixes já agressivos ficam ainda mais antissociais. E em terceiro, porque alguns têm medo da hibridação. E é aqui, justamente aqui, que a pulga atrás da minha orelha começa a incomodar.
Quantos dos aquaristas conseguiriam reconhecer um filhote híbrido dentre outros puros? Eu respondo: praticamente nenhum. Fato similar rememora o meu início com CAs, quando me venderam um falso marinho com alguns Pseudotropheus demasoni Pombo, dizendo ser o ideal dos CAs. Com os meses, descobri que apenas um dos peixes era P. demasoni, sendo que havia no meio P. socolofi e até um híbrido que permaneceu incógnito até hoje. À época o demasoni era o mais caro dentre eles e mesmo que não fosse, o fato de comprar um peixe achando que era outro é enganação. Fiquei muito indignado e ainda bem que ao invés de desistir, resolvi estudar e reformular meu aquarismo.
Esta coisa de não saber exatamente qual é o peixe, que eu não acho nem legal nem saudável para o hobby, é muito vista em espécies do Tanganyika, no gênero Tropheus e do Malawi, para o gênero Aulonocara, os quais têm valores maiores agregados àquelas espécies desconhecidas. Existem pessoas que misturam espécies para conseguir aquela “nova espécie” e vendê-la como se fosse exclusividade de sua loja ou negócio. Poucos são sinceros ao ponto de dizer que aquele peixe sequer é uma espécie classificada na taxonomia, mas sim um híbrido.
Eu não curto híbridos não-naturais, acho que a natureza já tem formas e cores mais que suficientes para agradar meus olhos. Por outro lado, existem pessoas que gostam, que procuram isso. É questão de gosto, entretanto, acho que o mínimo que poderia ser feito era que a informação chegasse ao consumidor. É muito ruim a sensação de se chegar numa loja e ter que desconfiar de que o peixe que você está vendo pode ser e pode não ser o que está escrito; aí vale a confiança no estabelecimento comercial… não dá para arriscar!
Dentre as espécies híbridas mais comuns no aquarismo, não há como não mencionar o Papagaio, um dos clássicos. Sabe-se que este peixe apresenta deformidades físicas advindas do cruzamento, sendo que os defeitos nas nadadeiras, boca e espinha dorsal são os mais comumente observados; sua dificuldade ou impossibilidade de se reproduzir é também bem comentada. O papagaio vem da cruza de, pelo menos, dois ciclídeos Amphilophus citrinellus (Midas cichlid) e Vieja melanurus (Redhead cichlid). Digo “pelo menos dois”, porque uma história “torta” como a do papagaio (desculpem o trocadilho, mas eu não resisto) indica que pode haver mais espécies envolvidas na “criação” do peixe.
Outro astro dos híbridos é o Flowerhorn, criado pelos asiáticos, o qual chama atenção pela protuberância imensa em sua cabeça, assim como as cores vibrantes.
Este provém do cruzamento de Amphilophus labiatus com Amphilophus trimaculatum, cujo híbrido resultante é misturado com o papagaio. Ou seja, é um duplo híbrido! (este termo não existe, é brincadeira).
Papagaio, a esquerda e flowerhorn, a direita.
Cultivo de híbridos – Vigor híbrido e Danos ambientais
Extrapolando o assunto do hibridismo para fora do aquarismo, vemos o caso da produção de tilápias para o consumo humano. Um dos mais famosos é o resultante entre o macho da tilápia de Zanzibar Oreochromis hornorum e a fêmea de tilápia do Nilo O. niloticus. Os híbridos resultantes garantem vantagens ao piscicultor, como crescimento e ganho de peso mais rápidos e o aumento da resistência às doenças. Algo que, do ponto de vista de provimento de proteína para o ser humano, é bom. Isso ilustra o conceito do “vigor híbrido”, que é quando o descendente, fruto de duas espécies diferentes, tem um desempenho superior à média dos pais (serve para tamanho, peso, cor, formas etc).
Meu destaque no título para “danos ambientais” é para trazer à tona uma informação preocupante para quando os híbridos chegam ao meio natural. Há estudos sendo feitos para analisar a atuação ou os impactos do híbrido de Surubim ou Pintado (Pseudoplatystoma corruscans), normalmente feito com a Cachara (P. fasciatum), em seu habitat natural. O primeiro, fazendo jus ao seu nome popular – pintado – é identificado pelo corpo coberto de pintas, e o segundo, por listras; o híbrido, acreditem, é literalmente um ponto e vírgula. Seria fácil impedir que os híbridos fossem confundidos e soltos no meio natural, caso este resumo de identificação visual fosse eficiente. Acontece que, especialmente em juvenis, a diferença é tênue e apenas se conhecendo a procedência, os reprodutores, é que se poderia ter certeza. Será?
A preocupação vem agora. O pintado é usado em atos de “peixamento” (inserir peixes de cativeiro no meio natural) em certos locais, como pontos na bacia hidrográfica do rio São Francisco – por si só o ato já é questionável, pois a endogamia (consanguinidade) também é capaz de dizimar populações.
As pesquisas feitas no meio natural têm demonstrado ao longo dos anos o crescente aumento percentual de indivíduos híbridos, mas… de onde vêm? Curiosos, os pesquisadores começaram a analisar os plantéis de criadores que possuem 100% de certeza que seus peixes são puros, descobrindo por meio de análises genéticas, que nem mesmo eles sabem que peixes possuem em seus tanques: boa parte das matrizes é híbrida, sem possuir os fenótipos característicos de uma ou de outra espécie.
No ambiente, os híbridos sexualmente viáveis estão sendo capazes de sobrepujar os puros (vigor híbrido atuante), e os descendentes continuam viáveis até, mais ou menos, a quarta geração (F4); observa-se que mesmo os estéreis atrapalham, pois realizam todo processo de cópula, exceto a fecundação efetiva, impedindo que um peixe nativo encontre outro nativo e gerem os descendentes.
Por fim, só para saber, o Surubim é uma espécie ameaçada, conta com um plano de recuperação, e tem como pressões de ameaça as barragens, como primeira ofensa e os híbridos como a segunda.
Bem, ficam aí para você as reflexões sobre a questão dos híbridos. Para mim, o que pega, de uma forma geral, independente de gostar ou não, é a informação não chegar clara na ponta. Se já não soubermos, ficamos vulneráveis. Não acho justo. Deveria haver maior responsabilidade de quem os produz e, mais ainda, de quem os destina a frente, especialmente quando seu destino final é a natureza.
Agradeço a leitura! Vejo vocês no próximo artigo! Abraços!

Com Bravo de Bravura, e não de Braveza, Johnny Bravo (João Luís), escreve para revistas especializadas e para o blog da Sarlo há um cadim de tempo. Nessa jornada Julioverniana, após 20 Mil Léguas de textos, agora ele também desenvolve os roteiros para os vídeos de chamada do Sarlocast, onde você pode ouvir a sensual voz desse aquaman (tradução: homem de aquários).