Sem mistério algum, o termo “Tang” deriva da abreviação de Tanganyika e no mundo do aquarismo é atribuído, especialmente, ao ciclídeos daquele lugar. É um vocábulo que engloba uma infinidade de diferentes espécies, verdadeiros universos de complexidade, mas que nos ajuda a classificá-los, indicando sua origem.

Por ser o vovô dos três grandes lagos do Rift Valley africano, formado entre 12 e 9 milhões de anos, o Tanganyika possui peixes que tiveram mais tempo para se ajeitar, arrumando o que fazer no dia-a-dia, alocando-se com mais propriedade em suas funções no lago. Isto é o que embasa aquaristas que procuram os tangs como peixes que possuem “mais hábitos do que cores”, no intuito de se referir a peixes com comportamento mais elaborado…e realmente eles dão um show nesse quesito (em outros também).

O significado de tal maturidade se reflete em peixes que passaram a ocupar nichos (lugares e funções) ecológicos mais especializados, os quais estão tão bem preenchidos que ameaças e influências externas têm menor chance de impactar o ambiente de forma irreversível. Um exemplo para ilustrar isso seria algo do tipo “uma espécie invasora se estabelecer no Tanganyika”…isolando da análise outros fatores, tomando apenas o fato de termos comunidades experientes, a nova espécie, ao tentar utilizar um nicho no lago, teria reais dificuldades de vingar, uma vez que quem está ali já faz o serviço de forma bem mais eficiente. Um tang é tal qual uma engrenagem de uma máquina que funciona em perfeita harmonia.

Dessa forma, no lago ou mesmo quando pensamos na montagem de um aquário, podemos lidar com a estratificação ou o zoneamento (ou “cada peça em seu lugar”). “O que seria isso?” Bem, pra começar, você já deve ter ouvido os termos: rock-dweller, sand-dweller e shell-dweller, não é mesmo? Eles advêm do inglês, mas não se preocupe, pois dá pra entender facinho. A palavra dweller significa “aquele que habita ou morador”; daí você traduz a outra e entende tudo: rock (rocha), sand (areia) e shell (concha) – destaque para shell-dweller, que já está aportuguesado para conchícula. Aí eu pergunto: entendendo o significado dos nomes, você já consegue visualizar alguma estratificação ou o zoneamento? Eu sei que ainda está incompleto, mas me acompanha e pense comigo…se o peixe é um conchícula, que dizer que seu ambiente é em meio às conchas, se é rock-dweller, ficará em meio às rochas etc. a maturidade dos tangs se apresenta aí, bem evidente, visto que são tão fiéis a isso, que se você separar os ambientes de forma clara, eles respeitam (de certa forma).

Entretanto, não precisamos ficar confinados num pensamento cartesiano, na verdade, precisamos evoluir em 3D, sim, pensando em altura ou estratificação vertical. No lago Tanganyika temos peixes desde a zona de arrebentação até zonas profundas. A primeira possui peixes adaptados a uma região de águas rasas, até 3m de profundidade, a qual além de receber excesso de luminosidade, apresenta altos níveis de oxigenação devido às ondas; consideremos aqui também a tendência às mudanças de parâmetros, época das chuvas, turbidez e etc., loucura total! Bem diferente das águas profundas, mais calmas, sombreadas e com variações menores.

Um mergulho no Tanganyika

Para entender melhor esse lance de estratificação vamos, como num mergulho, partir da superfície, indo em direção ao fundo, vendo o que encontramos…Já adianto que as espécies citadas aqui são apenas uma pincelada, daquelas de aquarela bem diluída, do que existe no universo dos tangs.

Gênero Eretmodus

O gênero possui espécies adaptadas a viver na zona de arrebentação, onde o pH registra-se maior, uma vez que com a movimentação da água há liberação de CO2 para a atmosfera, o que influencia diretamente nesse parâmetro. São como os mbunas do Malawi, que já vimos noutro artigo, escondendo-se por entre as rochas e em termos de função ecológica, pareiam-se com o malawian Labeotropheus, tanto por ser especializado em raspar algas, como por ser um incubador bucal materno (fêmeas incubam). Seu tamanho fica em cerca e 9-10cm e sua agressividade é moderada; estão classificados informalmente como “gobies” no universo tang – só porque são peixes que ficam tocando o substrato com a barriga.

Gênero Tropheus

Falando em vegetarianos, não há como tratar de Tanganyika sem mencionar os peixes do gênero Tropheus. Este é um peixe gregário, que adora viver em cardumes com pelo menos uma dúzia de indivíduos – algo que ajuda a conter sua acirrada competitividade intraespecífica. Vivem em ambientes rochosos, em profundidades variáveis e também são as fêmeas que incubam os ovos e filhotes na boca. Das seis espécies validadas pela taxonomia, duas se destacam: 1) Tropheus duboisi: provavelmente o mais comum por aqui (não afirmo, porque nunca fiz uma avaliação); 2) Tropheus moorii, possivelmente a espécie com o maior número de variedades, incluindo aquelas do tipo “black” ou “red” que vemos por aí. Para os Tropheus eu faria dois alertas: 1) é o tang mais suscetível ao “Bloat” (a mesma doença chamada Malawi Bloat), o que surge como um alerta para ministrar alimento correto para peixes vegetarianos; 2) são facilmente hibridizáveis, se for misturar prefira colocar T. duboisi com uma única espécie de T. moorii, por serem mais diferentes entre si, e não duas variedades de T. moorii.

Cyprichromis leptosoma

Afastando-se da margem e das zonas rasas, antes de irmos diretamente para o fundo, nos deparamos ainda na superfície com a “sardinha” do Tanganyika: a leptosoma. Encontrada em cardumes gigantes, este peixe (e outros congêneres) possui um fenômeno interessante, atraindo para si a atenção de praticamente todos os peixes do lago. Os Cyprichromis promovem migrações sazonais e causam um frenesi alimentar nas demais espécies…até quem mora mais embaixo sobe para degustar a iguaria. Eles são incubadores bucais maternos…os últimos da lista, pois a partir de então, serão elencados peixes de ovos adesivos.

As Julies…

Chegando nas rochas, começamos a observar inúmeros peixes esgueirando-se em fendas e cavernas. Dentre os mais notáveis e recomendáveis para a maioria dos aquários temáticos de Tanganyika estão os peixes do gênero Julidochromis…carinhosamente chamadas de Julies. Das cinco espécies firmadas na taxonomia, eu só recomendo as cinco: Julidochromis dickfeldi, J. marlieri, J. ornatos, J. regani ou J. transcriptus. Micropredadores, de porte médio (7 a 13cm) e agressividade moderada (pode ser mais exacerbada dentre as próprias Julies), precisam apenas de aquários com rochas que promovam fendas…beleza e alegria garantidas!

Neolamprologus leleupi (Leleupi)

Uma notória coloração alaranjada quebra os tons pastéis das pedras e chama a atenção daquele que aceitou o desafio de mergulhar no lago e se aproximar das formações rochosas: o Leleupi. Ele é um rock-dweller micropredador de hábitos solitários, que vive nos entremeios de rochas (e objetos do aquário). Tive a experiência – e por isso aconselho a observar – de vê-los escavando sob o complexo principal de rochas, construindo suas galerias, o que me obriga a relembrá-los de deixar as rochas bem calçadas no fundo (não apenas sobre a areia), evitando desmoronamentos. A despeito do seu gosto por cavernas, quando em época de reprodução, é comum ver fêmeas escolhendo conchas para realizar a desova – são tidos como shell-dwellers eventuais. Por falar nisso, é interessantíssimo observar o cuidado parental de ambos os pais. Partindo de um comportamento solitário, eles começam a formar uma espécie de associação organizada, onde os filhotes não são apenas tolerados no território, mas sim instigados a participar das atividades, inclusive, de resguardo da área. Sucessivas desovas são comuns de ocorrer e os filhotes vão assumindo postos por ali. Somente sairão quando sua “maturidade” começa a desafiar os pais…é quando devem procurar formar suas próprias famílias; deixar a cria junto do casal formador é também interessante para que seja mantida a paz entre eles.

Há uma variedade oriunda de Bulu Point (região do lago), que por ter a parte superior do lábio escura, é chamada lá fora de “dark mustache” (bigode escuro). Em certos mercados, a seleção de espécimes fez com que essa característica fosse banida, em busca de variedades imaculadas, como o Dutch Orange (que é aquele laranjão). Por outro lado, encontramos com facilidade no Brasil peixes que ficam com a boca roxa…algo lindo de se ver. Cá entre nós, quem já teve este peixe sabe que esta história de mais amarelo ou mais laranja está vinculada à nutrição; a presença de carotenos está diretamente ligada a isso.

Nelamprologus pulcher (Daffodil)

Ao redor desse banco de rochas, vemos um cardume de peixes ativos, os quais utilizam tanto as proximidades quanto cavernas e fendas. O Daffodil é um dos meus preferidos, dentre os tangs, devido as suas nadadeiras afiladas, como a cauda em lira ou os filamentos nas porções terminais das nadadeiras dorsal e anal. Embora seja uma espécie monomórfica, machos encorpam um pouco mais e desenvolvem com mais notoriedade um calo sebáceo na cabeça. Conserva, infelizmente, um comportamento altamente agressivo, com requintes de crueldade. Embora alcance a média de 13cm, o Daffodil não se intimida diante dos alvos, não importa quem sejam. Ele se concentra e age em cardumes, seja para defesa de território, seja para predar; este comportamento em aquário, por vezes, nos choca, tamanha a ferocidade das investidas. Devido a este importante fator, eles são recomendados apenas para aquários com populações maduras de outros tangs de porte médio…se você os coloca logo no início, ganham confiança e seu mando é no estilo máfia italiana.

Pode ser que você encontre este cara aqui sob a sinonímia Neolamprologus brichardi, porém, não encontrei referência suficiente para argumentar e prefiro mantê-las como duas espécies distintas, tal qual eu conheço.

Neolamprologus tretocephalus

Nervosinho por nervosinho, destaco outro belo peixe: o tretocephalus ou “ciclídeo cinco barras” (tipo tradução literal de Five Barred Cichlid). Ele parece até uma frontosa menor, chegando apenas aos 13-15cm, com temperamento explosivo e alta territorialidade. Combinações possíveis são Julies, que ficarão nas fendas das rochas, e leptosomas, que nadarão livres na superfície, reduzindo as rusgas entre os peixes. Ele é um rock-dweller, que prefere comer em fundos arenosos, já que seus alimentos preferidos estão ali: uma ampla gama de invertebrados, que vão desde larvas de insetos e crustáceos até caramujos…“detalhezinho” que denota a força de seu aparato bucal e reforça os avisos de cuidado com as misturas de peixe no aquário dele.

Lamprologus ocellatus

Ao redor desses rochedos, são avistados aglomerados de caramujos, todavia, ao chegar mais perto é perceptível que as conchas estão sem moluscos…e com peixes! Estes são os shell-dwellers, dentre os quais destaco o L. ocellatus. Ele é um diminuto (uns 6cm no macho) e valente CA, com olhos saltados que por vezes lhe dão o apelido de “cara de sapo”. São reluzentemente lindos e encantadores, sendo que dentre seus hábitos costumam enterrar a concha no substrato, quase que completamente, deixando apenas o orifício de entrada descoberto.

Altolamprologus calvus

Passeando entre as rochas e conchas, um peixe de singular formato parece procurar algo. Seu corpo compresso lateralmente (tamanho em torno dos 13-15cm) e sua boca esticada lhe permitem fuçar nas reentrâncias à procura de alimento…e isso pode significar filhotes de peixes e não somente microrganismos. Suas cores podem variar conforme a localização no lago e costumam estar de acordo com o ambiente, sem lhe dar demasiado destaque e atrapalhar suas emboscadas. Em aquários são tímidos, mas não deixam seu hábito predador de lado.

Perissodus microlepis

Para terminar a exposição de peixes, escolhi uma curiosidade, que amplia a maravilha das especializações dos tangs: um peixe comedor de escamas! Isso mesmo, um invejoso que rouba peças da indumentária alheia! A estratégia deste CA anão (11cm) baseia-se em se posicionar num local ruim para peixes maiores enxergá-lo: a parte posterior dos flancos. Já possuem, inclusive, tendências genéticas no posicionamento das bocas, onde alguns exemplares possuem a boca voltada para a direita e outros para a esquerda, detalhes que lhes permitem se posicionar quase que paralelamente à vítima e ajudar no “disfarce” até que o bote seja dado (quando vistos de cima, é possível enxergar a boca torta, característica que é amplificada durante a vida do peixe). Desse jeito eles ficam fora do alcance da vista de suas vítimas, que quando percebem, já estão com algumas escaminhas a menos, sentindo apenas uma beliscada repentina.

Ainda falta muito peixe, mas não dá pra falar mais, pois tenho ainda que dar um panorama sobre a água do aquário…por via das dúvida anota aí outros peixe magníficos para pesquisar: Chalinochromis brichardi, Cyphotilapia frontosa (que só não falei porque tem um artigo sobre ela aqui no blog), Opthalmotilapia ventralis e Cyathopharynx furcifer…o Ministério do Aquarismo adverte: aprecie com moderação, estes peixes podem viciar!

Agora você visualiza melhor a organização? Leptosoma nadando na superfície, Daffodil na meia água, Julies nas reentrâncias das rochas e Brevis em setores reservados, protegidos pelos aglomerados de conchas. Estratificação permite a você colocar mais indivíduos num mesmo volume, o que não significa apenas beleza a mais. É importante perceber que isso exige mais do aquário, dos equipamentos e, claro, da qualidade de água.

Características do aquário e da água

Antes de mais nada, em termos gerais, cabe reportar que a agressividade de tangs é menor que a de malawians, o que também auxilia quando pensamos na estratificação para povoar o aqua. Este fator, para mim, é um marco que dificulta a mistura de peixes dos lagos.

O tamanho do aquário varia de acordo com a sua escolha de peixes, podendo ser um de 70 litros se você optou por uma espécie de shell-dweller a mais de 400 se você tem um aqua diverso, com peixes de todos os ambientes (rocha, areia e nado livre).

Rochas calcárias são as recomendadas e, caso não as tenha disponíveis, prefira as neutras. Estas devem formar conjuntos dispostos pelo aquário, onde sejam deixadas fendas e cavernas para dar abrigo aos rock-dwellers. Prefira também areia de granulometria uniforme e, da mesma forma que o aconselhado para as rochas, escolha substrato próprio para CAs ou a areia de filtro de piscina, que é neutra. E por fim, as camas de conchas de caramujo, para os shell-dwellers, as quais podem ser de pomacídeos, devidamente limpas. Não posso deixar de mencionar que, caso você tenha escolhido peixes como o Eretmodus, oriundos da zona de arrebentação, além de melhorar a iluminação, incremente também a movimentação da água, utilizando bombas submersas e filtros internos; o uso do UGJ, descrito no último artigo também seria uma boa.

Como, possivelmente, você já sabe, a água do Tanganyika é a mais alcalina e dura dentre os três grandes lagos do rift, o que significa que é quase certo que você precisará de sais próprios para CAs.  O detalhe para a água do Tanganyika é a necessidade, atestada de aquaristas e pesquisadores, da presença de iodo dissolvido. Neste caso, é importante o uso de sais específicos, para que já venha em quantidade apropriada; o elemento é importante para a fisiologia do animal, influenciando em seu desenvolvimento. Para um aquário de Tangs são recomendados parâmetros em torno do seguinte: pH entre 8.5 e 9.0, KH entre 8 e 10 e GH de 12 a 15. No caso de dúvidas ou desacordo com estes parâmetros que falei, siga as dicas dadas pelo fabricante. Em termos de temperatura sugiro de 24ºC a 27ºC.

Já sei que não consigo falar pouco de CAs…por isso os textos mais extensos. De qualquer forma, agradeço a leitura, espero que tenha gostado do conteúdo…e como sempre digo: até o próximo artigo!

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