“O peixe morre pela boca.” – Diriam alguns, com base no ditado. Outros, porém, tipo eu, diriam que eles “vivem” pela boca. E falo isso além do óbvio “comer e manter-se vivo”. Explico.
Poucos são os habitantes deste planeta que percebem que peixe não é uma coisa só e que entre as milhares de espécies existentes, além das evidentes cores, há também detalhes gritantes que falam sobre aquele ser. Infelizmente ainda é assim com a maioria das pessoas que possuem peixes em aquários (note que não usei a palavra “aquaristas”), os quais mal se preocupam com que o bicho come, imagina refletir como é a boca dele!
Certamente você que lê o blog, livros e artigos, participa de fóruns, vai a encontros e conversa com os lojistas, já parou para observar a boca de um peixe e sabe que elas não são todas iguais. Contudo, pretendo ir um pouco mais longe do que só falar da boca em si.
Se fôssemos tomar a palavra boca no sentido latu sensu, precisaríamos considerar aí os ossos faringianos, língua, maxilares, músculos associados e formato do crânio…ou mais tecnicamente, aparato bucal.
Para os ciclídeos africanos dos lagos do rift, inclusive, o segundo grande momento de evolução e divergência das espécies, se deu com a especialização do aparato bucal (obs: o primeiro foi a escolha e ocupação dos habitats e o terceiro foi seleção sexual, onde as fêmeas ditaram as cores que preferiam e selecionaram com quem cruzariam). Trata-se de uma divergência ecológica, ou seja, a competição por recursos foi suficiente para promover a especiação mesmo numa região sem barreiras geográficas (simpátrica) – o Tanganyika é um ótimo exemplo para esta frase.
Para se ter uma imagem do que digo, basta olhar para as múltiplas e belas faces dos malawians que conhecemos: Fossorochromis rostratus, Labeotropheus trewavasae, Pseudotropheus demasoni, Labidochromis caeruleus e Dimidiochromis compressiceps. São nítidas as diferenças, não são? Se não conhece ou não sabe assim de cabeça usa os nomes que escrevi e põe no Google, veja como são completamente diferentes.
Quem tem boca vai a Roma…e também para as Américas
E para os ciclídeos não ficarem sozinhos nessa, como uma aparente exceção, colocamos ao lado deles os labrídeos (família Labridae – peixes marinhos). Ambas as famílias (pertencentes à subordem Labroidei e com evolução independente) são ricas em espécies (respectivamente 1.500 e 600 – valores arredondados para cima), sendo que enquanto os ciclídeos ganham no número de espécies, os labrídeos possuem maior diversidade na forma do crânio – um fator anatômico que faz toda diferença, visto que também se trata de uma estrutura que sofreu as mudanças da evolução para favorecer as habilidades de sobrevivência das espécies.
“Mas o que há de especial nessa mudança?” Aqui vai o “tcham” da evolução. Tanto os ciclídeos quanto os labrídeos possuem dois tipos de mandíbulas (que vêm em pares): as orais e as faringianas. As orais compõem a boca, propriamente dita, sendo responsável pela captura e manipulação inicial da comida (ou, em termos práticos, o arrancar, morder, amassar). Já os maxilares faringianos (assim como a boca, um superior e um inferior), localizados no que podemos chamar de garganta, é que realmente ajudaram esses peixes a ir para frente, trabalhando (mastigando) o alimento e conduzindo-o esôfago adentro.
Como me sinto mais confortável na água doce, não adentrarei muito mais no mundo marinho, falando sobre os labrídeos, expandindo nossa conversa mais para o lado dos CAs e outros peixes de água doce.
A milhares de quilômetros dos lagos do Rift Africano, e mais pertinho de nós aqui…outros ciclídeos, os americanos, uma facção de peixes neotropicais que compartilha com seus longínquos familiares um ancestral comum, também se comportam da mesma maneira evolutiva.
A grande tribo Geophagini (nome que pluraliza o nome “Geophagus”), é a mais rica em espécies e diversidade de morfologia dentre os ciclídeos neotropicais, com 240 espécies descritas (um monte ainda pendente), sob dois principais clãs irmanados: GGD (vindo das iniciais dos nomes mais representativos: Geophagus, Gymnogeophagus e Dicrossus), com 47 espécies, e CAS (Crenicichla, Apistogramma e Satanoperca), com 193.
Os Geophagini proveem ótimas chances de se examinar as relações entre a diversidade morfológica e a evolução adaptativa. Separando gênero a gênero para se ver de perto, temos os diminutos Apistogramma, que entre as camas de folhas mortas, coletam invertebrados; os Geophagus que engolem substrato e “peneiram” por entre seus arcos branquiais aquilo que desejam comer e as Crenicichla, vorazes predadores piscívoros, que disparam atrás de suas presas.
O legal dessa história é pensarmos que essas famílias, e os subgrupos dentro delas, evoluíram independentemente, chegando a resultados e morfologias similares, ou seja, seria correto afirmar que a radiação adaptativa de espécies está fortemente ligada à oportunidade ecológica (Acabou o feijão? Só tem arroz? Bora de arroz então…).
Boca a Boca
“Dá para ver, na prática, o resultado dessa evolução?” Sim, é só olhar com curiosidade para a boca de um peixe. Como vimos, falar de boca é muito mais que entender se ela está voltada para cima ou para baixo. Serve para entender que aquele peixe desenvolveu estilos e morfologia adequados para otimizar a sua capacidade de obter o alimento. Para nós aquaristas há alegria de descobrir os porquês e o fascínio de encontrar tantas formas diferentes de caras de peixe: beiçudos, bicudos, dentes à mostra, bocarras e por aí vai. As variedades de boca, no entanto, enquadram-se em três principais tipos:
a) Superior: quando a boca se abre para cima. Normalmente a mandíbula inferior é mais longa que a superior, podendo indicar predadores de embocada – insetos ou outros peixes.
b) Inferior ou subterminal: fica situada abaixo do centro, indicando que o peixe se alimenta no fundo e que a mandíbula inferior é menor. Boa parte dos peixes com este tipo de boca conta também com barbilhões táteis, o que os ajuda a detectar o alimento: algas, invertebrados bentônicos ou até detritos.
c) Terminal: boca que se abre na zona intermediária da face, com as mandíbulas superiores e inferiores iguais. Dá pra antever, no quesito alimentar, que por terem a boca no meio da cara podem contar com mais oportunidades ou mesmo serem considerados mais oportunistas (cardápio variado).
Obviamente, nós que não nos rendemos a explicações simples, podemos pensar em boca singulares. Um cascudo, por exemplo, possui a boca completamente voltada para baixo; é considerada subterminal, porém, o termo ventral é o aplicado. Além desta observação, lembro que seus lábios são dotados de papilas e a modificação surgida conferiu-lhe uma perfeita ventosa. Interessante notar que a evolução permitiu que a estrutura bucal do cascudo deixasse ele ficar grudado ao mesmo tempo em que pode respirar e se alimentar sem que perca a aderência da sucção. Ele simplesmente pressiona seus beiços contra a superfície, expandindo sua cavidade oral para criar pressão negativa, sendo que a água perpassa um fino cana localizado imediatamente atrás de seus barbilhões maxilares.
Da mesma forma observamos adaptações em outras espécies. Em Labeotropheus fuelleborni, um CA do Malawi com um tipo de boca subterminal (inferior) diferente do cascudo, revela um lábio superior que passa por cima do inferior, dando aquela impressão de “narigão”. Essa característica faz com que seja extremamente hábil para raspar algas das rochas sem que precise ficar inclinado 90º – como vive em águas mais rasas (onde bate sol e nascem as algas), a posição menos inclinada permite que permaneça de guarda quanto a predadores que possam vir de cima (ex: aves). E isso não é tudo. Seu crânio é mais curto que o de outros CAs e seus dentes são tricúspides (três pontas), facilitando o ato de raspagem de algas.
Outro colega seu, Maylandia zebra, vem para provar que ciclídeos do Malawi não e tudo igual. Com a boca do tipo terminal é um dos poucos mbunas (rock dwellers) que captura plâncton na coluna d’água por meio de sucção – tal qual o cascudo, ao abrir repentinamente sua boca, cria pressão negativa que puxa a água, que ao sair pelos arcos branquiais deixa ali o plâncton – seus dentes são bicúspides, justamente por não precisar tanto assim das algas raspadas. Labeotropheus fuelleborni e Maylandia zebra coexistem nos mesmos tipos de ambientes rochosos e encontraram, cada um, uma maneira diferente de se alimentar, diminuindo a competição por recursos.
Cabe ainda citar outra adaptação, que pode ser vista nos três tipos de boca citados mais acima: a boca protrusa ou protrátil. Trata-se de uma estrutura que impele, projeta, a boca para frente, em forma de tubo, sugando a presa para dentro.
E são ainda tantos exemplos e detalhes…peixe bicudos para coletar presas por entre frestas, dentes pontiagudos que firmam o peixe capturado, bicos de papagaio para quebrar corais e conchas, enfim, falar do aparato bucal dos peixes não é nem de perto algo trivial. Por isso que seria primordial verificar o porquê de um peixe saudável não querer comer, por exemplo. Pode ser, claro, que um bom incentivador de apetite possa resolver o assunto, por outro lado, pode ser que o peixe esteja requerendo algo mais – seu aparato bucal, motivo evolucionário daquela espécie hoje existir, pode estar atrás daquilo que realmente o sacia. Seu peixe é um piscívoro, caçador ativo ou de emboscada? Pense na possibilidade de alimentação viva. Sei o quanto este assunto é polêmico, mas é importante conferir ao animal que cuidamos a melhor estadia possível, enquanto ele nadar em nossos aquários. Considerar a dieta correta do animal também é um fator limitante para tê-lo ou não num aquário. “Conhecê-los cada vez mais, a fim de lhes proporcionar o melhor dos mundos!” Este é o lema.
Captura (abocanhar). Típica de peixes caçadores (piscívoros). As espécies categorizadas nesta modalidade, normalmente possuem a cabeça alongada, o que facilita a perseguição e a captura da presa.
Raspagem (morder/roer) e Sucção: cabeça curta, em formato de cone, com minuciosas diferenças no que concerne os dentes e mandíbula, especializações estas que estão correlacionadas com a ocupação de específicos nichos, tal como preferência por algas ou por nadadeiras
Bom, caros leitores, fico por aqui, agradecido por mais esta leitura, vejo-os no próximo artigo. Até lá!
Com Bravo de Bravura, e não de Braveza, Johnny Bravo (João Luís), escreve para revistas especializadas e para o blog da Sarlo há um cadim de tempo. Nessa jornada Julioverniana, após 20 Mil Léguas de textos, agora ele também desenvolve os roteiros para os vídeos de chamada do Sarlocast, onde você pode ouvir a sensual voz desse aquaman (tradução: homem de aquários).