Eu sempre tento dar aos peixes um status que os diferencie de objetos inanimados de decoração. Busco lembrar por meio de sua graça, musicalidade e complexidade, que são seres vivos tão intrigantes quanto quaisquer outros vertebrados. Desta vez, o que trago remonta à estratégia que espécies bem mais desenvolvidas, como aves e mamíferos, possuem: a construção de ninhos.
Imagino que você já conheça alguns exemplos, porém, quero com este artigo trazer ainda mais amostras para que vejamos que tal hábito também está difundido entre os peixes.
Antes de mais nada, seria bom contextualizar um pouco, lembrando que a construção de ninhos é uma forma de cuidado parental, o que, por si só, já nos dá alguns vislumbres de entendimento. Agora, o que é, exatamente, um ninho?
É possível chamar de ninho quatro tipos de organização de uma área de reprodução: 1) escavação de substrato; 2) erguimento de paredes; 3) limpeza de superfícies, por nadadeiras ou boca; e 4) cimentação ou aglomeração de material por meio de substâncias químicas adesivas.
Bem, com isso colocado, vamos partir logo para alguns exemplos.
Ninhos para “los niños”
Betta splendens
Talvez o mais popular dos peixes construtores de ninho seja o Beta. Este peixe constrói uma estrutura de bolhas na superfície da água, seja no canto de um aquário, seja se valendo de alguma estrutura de apoio, como plantas ou objetos que chegam até lá. Parece óbvio isso, já que é um peixe que respira ar direto da atmosfera. Mas, se fossem apenas bolhas de ar, por que não estourariam?
O ninho de bolhas do Beta é possível porque o peixe possui um órgão faringiano, cuja localização tange o canal por onde passa o ar inalado e cada bolha é envolvida por muco. Deixe-me explicar mais detalhadamente. O epitélio (tecido que reveste) de tal órgão é repleto de papilas e rugas, assim como células em forma de cálice (caliciformes). Quando o macho constrói o ninho, ele cria bolhas que passam por este órgão e elas são envoltas por um muco rico em glicoproteínas, o qual é responsável por fazer as bolhas permanecerem na superfície e não simplesmente estourarem.
Uma dica: por ser um peixe originário de águas pantanosas, ou seja, água paradas ou de movimento extremamente lento, recomenda-se que não haja turbulência na água, provocada por alguma bomba ou filtro, pois mesmo tendo sido bem feito, a movimentação da superfície da água pode vir a destruir o ninho de bolhas.
Este Shell-Dweller, ou conchícula (peixe que habita o interior de conchas), pode ser encaixado como verdadeiro construtor de ninhos e não apenas uma espécie que mora numa concha e desova nela. O porte avantajado do macho (13 cm) permite que ele tome em sua boca conchas vazias de gastrópodes (caramujos dos gêneros Neothauma, Pila, Paramelania e Lavigeria) e as carregue até o local onde escolheu construir seu ninho, empilhando-as.
A construção do ninho é um atrativo adicional de fêmeas, para acrescentar ao fato do tamanho, cores certas e a dança nupcial. Agora, pense comigo, pegar uma concha no lago e trazer ela para o seu lado da história não teria como ser um ato simples, num lugar onde existem diversas outras espécies de shell-dwellers; seu hábito gera uma série de efeitos em cadeia.
A verdade é que essa movimentação compulsória de conchas, traz consigo mais personagens, conchículas que acabam parando dentro do ninho do L. callipterus, tais como: N. brevis, Lamprolugus ocellatus, L. speciosus, Telmathochromis vittatus ou T. temporalis…e muito mais, incluindo algumas que se aproximam do ninho de propósito, para usar conchas dali ou escavar por debaixo e reproduzir, como é o caso do Neolamprologus multifasciatus. De todas estas, o caso mais curioso é relacionado ao N. brevis, uma vez que até os machos dominantes da espécie são tolerados no ninho do gigante L. callipterus. Calcula-se que isso de deva por N. brevis ser uma espécie pouco agressiva e sem tendências de predação sobre outras espécies; dessa forma, reproduzindo no mesmo ninho, N. brevis dilui os efeitos de predação sobre a prole de L. callipterus. As duas espécies coordenam, inclusive, o período de reprodução; fora dele não há esse tipo de tolerância.
Interessante também é pensar que um peixe de 13 cm, capaz de carregar uma concha na boca, não consegue entrar nela. Depois de atrair a fêmea, ela escolhe e entra numa das conchas do ninho para pôr os ovos. Durante o frenesi nupcial a única forma dele fecundar os ovos é inserir a parte posterior do corpo dentro da concha e lançar o esperma, procedimento que realiza repetidas vezes e sem contato visual. Já captou o problema? Num ninho cheio de espécies agregadas, obviamente, há a chance dele errar de concha e lançar esperma em outra concha, habitada por distinta espécie e, por vezes, gerar híbridos. Cabe uma observação importante: nas condições de estabilidade do Tanganyika, normalmente híbridos são descartados naturalmente pelas fêmeas, durante a seleção pré-nupcial, e não conseguem propagar seus genes.
Cyathopharynx furcifer
Aqui falamos de um dos mais belos e cativantes ciclídeos do lago Tanganyika. Trata-se de um incubador bucal, sendo as fêmeas as responsáveis por coletar os ovos e incubá-los até que os alevinos estejam prontos para se virar sozinhos.
Na época de reprodução, o macho da espécie torna-se mais territorial e colorido, iniciando um processo de soerguimento de paredes na areia. O final do trabalho é um ninho que se assemelha à cratera de um vulcão. Não é incomum o fato de se ver o peixe carreando areia para o topo de uma pedra chata, onde constrói o ninho. Embora o processo de reprodução esteja relacionado a substrato de areia, o C. furcifer usa rochas como abrigo para esconder-se.
Considerando os hábitos reprodutivos do peixe, o substrato deve ser de areia, reservando, em termos de espaço, uma vasta “planície arenosa” no aquário. Por causa da área requerida e das especificidades de sua manutenção, aquaristas mais experientes recomendam um tamanho mínimo de aquário para esta espécie: 1.000 litros.
Baiacu ou Pufferfish (Torquigener albomaculosus)
Um dos mais icônicos ninhos feitos por um peixe, até porque ao se ver um ninho de pufferfish, parece que estamos olhando para uma detalhada mandala, de tão precisa que é sua confecção. Acredito que se o CA Cyathopharynx furcifer visse o trabalho deste baiacu, certamente mudaria de profissão, deixando de ser construtor para ser algo como carnavalesco ou design de moda.
O Pufferfish macho trabalha incansavelmente para atrair a atenção de uma fêmea, um período que pode ser um dia inteiro ou mesmo de uma semana, visto que os fluxos marinhos estão constantemente destruindo sua obra de arte. Usa apenas sua boca e nadadeiras, além de místicas fórmulas matemáticas, que conferem a perfeita simetria radial de seu ninho. Conchas e pedras que estejam no caminho são descartadas ou utilizadas como detalhes de ornamentação, colocadas habilmente no cimo das dunas que cria.
“Esgana-gato” ou Stickleback fish
Este pequeno peixe (11 cm) de nome popular pra lá de esquisito e incompreensível (esgana-gato, convenhamos…), possui ampla distribuição no hemisfério norte, por mares, lagos e rios. São várias espécies sob esta denominação, pertencentes à família Gasterosteidae e dentro de cinco gêneros: Apeltes, Culaea, Gasterosteus, Pungitius e Spinachia.
Na época de reprodução, os machos tornam-se mais agressivos e territoriais, iniciando a construção de um ninho feito da vegetação local, grudada com uma proteína produzida em seu rim. Com a casa pronta ele realiza a dança nupcial, atraindo uma fêmea receptiva e apontando a entrada do ninho com sua cabeça. Lá dentro a fêmea deposita centenas de ovos e, então, é convidada a sair. O macho entra no recinto, fecunda os ovos depositados, e passa a cuidar da aeração (evitando fungos) e proteção de ovos e filhotes. Curiosidade: pode acontecer de mais de uma fêmea entrar no ninho para depositar ovos, isso antes da entrada do macho para fecundação, assim como pode ser que uma única fêmea desove em mais de um ninho.
Gramma brasiliensis
Nesta espécie marinha de recifes de coral, também é o macho que constrói o ninho, porém, façamos as devidas honras, pois trata-se de uma espécie hermafrodita protogínica (onde os órgãos femininos maturam-se primeiro que os masculinos), ou seja, os peixes serão fêmeas antes de tornarem-se machos.
No detalhe é ainda mais impressionante, visto que não basta ser macho para iniciar a construção de um ninho, o indivíduo precisa ser dominante. Conquistado este status, ele seleciona buracos, abaulamentos, reentrâncias ou pequenas cavidades em rochas e começa a levar talos de algas calcárias ou macroalgas, coletadas com o que encontra flutuando na água, os quais entrelaça com tubos de vermes, deixando uma única e apertada saída/entrada. O ninho sempre é sempre feito no teto dessas cavidades e o peixe fica de cabeça para baixo quando lá dentro. Internamente, são reportados emaranhados calçando o ninho por dentro, como um local para a desova. Após a construção, outros organismos, como esponjas, algas etc. crescem sobre a manta tecida e auxiliam na camuflagem do ninho.
Assim, o ninho é feito, mantido e protegido apenas por esses machos dominantes, nunca juvenis ou fêmeas. Ele cria uma espécie de fidelidade, usando o ninho para tudo: reprodução, esconder-se, descansar etc., algo que nem fêmeas, nem juvenis fazem – mesmo que seja um ninho abandonado, tais indivíduos escondem-se em outros locais, nunca um ninho.
Os exemplos seguem, com particularidades em cada grupo ou espécie. O intuito do artigo era apenas o de mostrar outra faceta incrível dos peixes, reafirmando que quanto mais se adentra nesse universo, mais maravilhas são descobertas.
Agradeço a leitura!
Com Bravo de Bravura, e não de Braveza, Johnny Bravo (João Luís), escreve para revistas especializadas e para o blog da Sarlo há um cadim de tempo. Nessa jornada Julioverniana, após 20 Mil Léguas de textos, agora ele também desenvolve os roteiros para os vídeos de chamada do Sarlocast, onde você pode ouvir a sensual voz desse aquaman (tradução: homem de aquários).