Seguimos na linha ambiental de podcasts onde estou abordando a invasão de espécies vinculadas ao aquarismo nos ecossistemas aquáticos brasileiros. O assunto anterior (“Aquarismo Responsável – Parte I: espécies exóticas invasoras”) tratou de espécies exóticas, aquelas oriundas de ambientes estrangeiros, neste nos concentraremos nas espécies alóctones.

Antes de mais nada, começaremos fazendo um esclarecimento sobre a diferença conceitual entre espécies exóticas e as alóctones invasoras. Sem entrar muito nos detalhes, a diferença básica é a região geográfica de onde vêm: se elas pertencem a outros países, que possuem sistemas hidrográficos completamente separados, chamamos de exóticas; caso pertençam apenas a bacias hidrográficas diferentes, às vezes perto uma da outra, mas sem contato, chamamos alóctones.

Hoje em dia, no entanto, para trazer um entendimento mais prático e efetivo, esses conceitos se fundem quando o assunto é impacto no meio ambiente. Não importa de onde venha o peixe (ou outro organismo) ou qual a origem de seu passaporte: se não está em seu ambiente natural (nativo), devido a alguma interferência humana, tal espécie é considerada exótica, pois pode impactar o novo ecossistema, e se conseguir se instalar ali, é invasora.

Assim, o termo “alóctones” foi separado num outro podcast (este) apenas para mostrar que mesmo sendo espécies brasileiras, se elas estiverem em ecossistemas que não aqueles em que têm origem, podem ser potencial ou efetivamente impactantes.

Espécies invasoras de camisa verde-amarela

Mas esse peixinho aqui é invasor? Ao fazer esta pergunta, enquanto você ouve aqui sobre algumas das espécies apontadas pelo Ministério do Meio Ambiente – MMA como invasoras, lembro duas coisas (já vistas no podcast anterior): 1) há poucos estudos que possam refletir com segurança os impactos negativos de peixes de aquário no ambiente; e 2) mesmo sem registros oficiais ou notórios, é interessante considerar que todas carregam algum potencial de ameaça, muitas vezes contradito, porém, por outras confirmado.

Tais lembretes são para termos sempre em mente que o organismo, por si só, não é o réu, nem seu julgamento precisa ser sumário. Tal como a aquariofilia, a análise de meio ambiente é multidisciplinar, requerendo tempo e dados confiáveis. “Ok, e o que temos para hoje?” Vamos lá. Veja se você conhece algumas destas espécies aqui:

Astronotus ocellatus (Oscar ou Apaiari). Esse peixe arrebata corações, pois, conforme os relatos encontrados, seus donos percebem nessa espécie uma resposta direta, ou melhor, uma profunda interação aquarista-peixe. Originário da bacia amazônica (Peru, Colômbia e Brasil), foi detectado nos seguintes Estados (teste de siglas pra você): RS, SP, PR, RJ, MG, BA, PE e MS. Além da introdução direta, por meio dos praticantes da aquariofilia, atribui-se o escape de sistemas de cultivo como motivo da introdução em outros ecossistemas; no caso do Apaiari, também cultivos voltados para pesca esportiva e alimento. O Oscar é um belo ciclídeo cujo interesse alimentar natural se dá sobre espécies de caracídeos e também de invertebrados, sendo que esses seriam os alvos de seu apetite voraz quando em outros ambientes. Acho que vale a pena considerar duas coisas: 1) nem pequenos caracídeos, nem invertebrados possuem muita atenção dos estudos; e 2) não está atribuído nenhum impacto direto e específico do Oscar sobre eles, nesse caso, quando apontado algum dano a tais comunidades, existem outras espécies envolvidas.

Pterophyllum scalare (Acará-Bandeira). Um dos mais belos, na minha opinião, especialmente pela forma diferente que possui. Ainda não havia passado pela minha cabeça pensar num acará-bandeira fora dos rios amazônicos, mas conforme a publicação do MMA, está reportada a existência dele em apenas em dois municípios brasileiros: Muriaé e Miradouro, em Minas Gerais. Mesmo sem impactos observados sobre o ambiente em que está presente, é bom recordar que os ciclídeos têm um excelente e efetivo método de reprodução, onde os pais protegem a prole…e isso é uma baita vantagem reprodutiva!

Australoheros facetus (acará-zebra). É certo que conhecemos muitos outros “acarás-zebras” por aí, tem até mesmo um africano, mas esse aqui é nosso, vindo da bacia do rio Paraná (Uruguai, Argentina e Brasil, no Rio Grande do Sul). Acredito que o medo que se tem do amigo aí, ao ser encontrado no Parque Estadual do Itacolomi, municípios de Mariana e Ouro Preto, em Minas Gerais, deva-se ao desempenho da espécie na invasão de rios em Portugal e Espanha. Por ele ser um ciclídeo e ter uma dieta bem vasta, adaptando-se ao consumo de um variado cardápio alimentar, há chance dele se concretizar como um apto colonizador de novos habitats, ou seja, tirar carteirinha de invasor.

Hyphessobrycon eques (sim, ele mesmo: o mato-grosso). Pequeno no tamanho e grande no número de Estados onde está presente como invasor: Minas Gerais (Muriaé), São Paulo (lagos Diogo e Infernão), Rio de Janeiro (Resende e Volta Redonda) e Paraná (Londrina). Sua origem natural também é ampla: bacias dos rios Amazonas, Guaporé e Paraguai, o que também pode ajudar a dissipá-lo por outros sistemas aquáticos. Nós o conhecemos como um peixe muito ativo, mordiscador de nadadeiras, e que se amarra em comer larvas de mosquitos e micro-crustáceos. Como ele prejudicaria o ambiente? Competindo com as espécies nativas pelos recursos (comida).

Laetacara curviceps (curviceps ou, também conhecido como, letacara; tipo assim: o nome dele mesmo). Observação: o nome popular está erroneamente colocado na publicação do MMA. Trata-se de mais um ciclídeo amazônico que está presente na região de Muriaé-MG (não é coincidência, lá é um polo de piscicultura ornamental…prova de que não são, necessariamente, os aquaristas que soltam os peixes em missões de “salvar o peixinho”, mas sim de escapes de tanques de cultivo); constam os nomes do rio Glória e do córrego Boa Vista, este em Caratinga-MG. Esse peixe, como é comum em sua família, é um micropredador, podendo afetar os recursos locais, embora não haja comprovação ou registros de impactos nos locais onde se encontra.

Mikrogeophagus spp. (Ramirezi!!!! Como assim?!). Sério…Esse me espantou. Sempre achei que era o “fragilzinho” do aquário e talz. É da mesma família que o Oscar, sendo uma espécie super comum em aquários; na verdade duas, pois embora ambas sejam conhecidas como “ramirezi”, são taxonomicamente diferentes: M. altispinosus (brasileiro-amazônico) e M. ramirezi (estrangeiro da Venezuela e Colômbia). Tão sensível e, ainda assim, presente no ambiente aquático nas proximidades de Muriaé-MG: único registro em todo mundo! Tal peculiaridade torna ainda mais difícil prever se a espécie acarreta ou pode vir a acarretar problemas de ordem ecológica, entre outros.

Nannostomus beckfordi (lápis ou zepelin). Adivinha onde ele é encontrado. Se você respondeu Brasília, errou, ele foi detectado em Muriaé-MG; acredita? Outro pequeno peixe de aquário que está no ambiente, sem dados que apontem seu impacto.

Red Alert!

Obviamente, não somente em Muriaé existem peixes ornamentais alóctones soltos no Brasil. Já adiantei que os estudos são poucos e quando existem voltam-se, basicamente, para as espécies de topo de cadeia, com destinação para a mesa dos humanos. Sei, por exemplo, e por ter estudado o lago Paranoá, em Brasília, que nele há um percentual da ictiofauna (peixes) reservado aos ornamentais, dentre eles o espada (Xiphophorus helleri), o peixe-dourado (Carassius auratus) e o guppy (Poecilia reticulata). Quadros similares podem se repetir Brasil afora. É bem possível que, reunindo estudos locais, essa invasão nacional pudesse ser melhor evidenciada.

A quantidade de apontamentos do livro do MMA feitos para Muriaé, quando se refere às espécies ornamentais, me deixa um pouco mais confiante nos aquaristas, em si. Confesso que, no começo da minha leitura, pensava que eram os hobbistas os únicos responsáveis pelas introduções no Brasil. Não são, mas ainda representam uma influência significativa. O que fazer? Caçar todos os registros de criador e acabar com o hobby! Negativo! Estou certo de que há valor no hobby quando feito com carinho, dedicação e, sobretudo, responsabilidade.

Acho que os criadores de lá deveriam ter mais apoio governamental, tanto na forma de regras para o cultivo (indicação de equipamentos de biossegurança, normas claras e tangíveis, tratamento da água devolvida à natureza etc.), passando por linhas de crédito exclusivas para cultivo ornamental (uma vez atendidas as exigências normativas), até recebimento de dados técnicos (educação ambiental, cultivo, mercado etc.). Penso que, dando os subsídios fundamentais para permitir uma atividade “ecologicamente responsável”, seria possível cobrar mais deles. Sim, pois podemos aferir que dessa forma é plausível conciliar ambos: a natureza preservada e o aquarismo responsável.

Como um adendo a essa abordagem ambiental que estamos adentrando, levando em conta o município de Muriaé, ressalto que o bioma onde isso acontece é o de Mata Atlântica, um dos mais afetados de nosso país, do qual restam não mais que 9%. Iniciei a série de podcasts falando que a segunda maior causa de perda de biodiversidade era a introdução de espécies exóticas, mas a primeira é justamente a destruição direta dele. Penso que a Mata Atlântica não precisa ser atacada por todos os lados, se a gente ajudar a cuidar, fazendo a nossa parte, deixamos mais espaço para se resolver os demais problemas. Mata Atlântica é um exemplo, mas no quesito #ficaadica, todos os biomas estão sob ameaça.

No sentido amplo, cuidar do meio ambiente reflete na nossa qualidade de vida (saúde, entre eles), mas se formos para mais perto do nosso umbigo, podemos concluir que isso também significa que sempre haverá peixes nativos nadando por aí. Rios e lagos brasileiros povoados com espécies exóticas, perdem um pouco da graça, do charme, mais que isso, da mágica da natureza. Só de pensar que de uma hora para outra pode acontecer um incidente como o da Perca-do-Nilo no lago Victoria (África), dá calafrios.

Não tenho nada contra aquários comunitários, mas há uma grande diferença entre estes e os “rios comunitários”: a capacidade de controle. Ela é possível no nosso recipiente de água e impossível, quando falamos de um corpo d’água como um rio ou represa. Saiba que, uma vez instalada, uma espécie invasora pode nunca mais ser excluída de um sistema.

Não estamos (nós brasileiros) em posição confortável para deixar para amanhã o cuidado com o Meio Ambiente, uma vez que nossos biomas e, consequentemente, nossas espécies estão indo embora. No mundo do aquarismo, cito com segurança duas magníficas espécies que estão registrados em outra publicação do MMA, chamada “Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção” (Vol. II, de 2008): Hypancistrus zebra (o cascudo zebra, endêmico da bacia do Xingu) e o Simpsonichthys boitonei (Pirá-Brasília, meu conterrâneo, endêmico do Distrito Federal). O primeiro, além da pressão vinda dos efeitos da descaracterização ambiental, sofre com a captura para o comércio de aquariofilia com fins de exportação; o segundo tem na especulação imobiliária seu carrasco, uma vez que a voracidade da expansão não planejada acaba com os brejos e veredas que ele habita.

Mesmo tendo citado apenas esses dois eu arriscaria a afirmar, mesmo sem fonte de referência, que outras espécies estão ameaçadas por similares combinações de fatores. Novamente, é fato que “o grosso” das pesquisas, que envolvem ictiofauna, não se voltam para espécies ornamentais, mas sim para as espécies de topo de cadeia, como as que são alvo da pesca para fins de alimentação. Assim, como não supor, por exemplo, com relevante grau de acerto, que espécies do gênero como Apistogramma (por vezes, existem apenas num pequeno córrego) não estão entre os ameaçados?

Aquarismo do futuro (I have a dream…)

Por que não? Considerando que temos aquaristas com conhecimento a ponto de desenvolver técnicas próprias para reprodução em cativeiro de espécies em extinção. Considerando que há grande capacidade instalada no país para troca de informação, desde pessoal especializado até ferramentas virtuais excelentes. Considerando que a destruição do ambiente caminha a passos largos e que extinção é para sempre. Por que não tornar o hobby de aquarismo em algo mais sério? Sim, com a instituição de modalidades, como a de Criador Conservacionista, onde aquaristas interessados seriam designados para poder coletar, manter e criar espécies ameaçadas. Todavia, não basta a vontade dos aquaristas, pois sabemos que muita gente com ideias distorcidas anda por aí e nossa legislação e nosso aparelhamento dos órgãos de fiscalização e controle não é capaz de absorver mais essa demanda. Falta processo de firmar a origem dos peixes ornamentais comercializados, falta legislação inclusiva, faltam pesquisas…o caminho parece ser longo, mas não me soa como absurdo.

E a bacia do Paraíba do Sul (onde está Muriaé-MG), como fica? E outras “Muriaés” brasileiras? Não receberão assistência e orientação? O que será que pensam as autoridades? Que resolverão tudo sozinhas? Que a natureza reagirá e retomará sua qualidade original? Muitas questões que não sei responder. Porém, acredito que, se instituído o aquarismo responsável, teremos menos invasões de ambientes aquáticos e mais chances de salvar espécies que estão tendo seus ambientes destruídos.

Por vezes penso o quão relaxante seria se, ao invés de ver televisão, eu pudesse ver realidade dos rios naturais ao ficar de frente para o meu aquário amazônico. Saber que meus Acarás-bandeira, Ramirezis e Zepelins nadam saudáveis, tanto no rio como no meu aqua, com parâmetros bem controlados para ambientá-los de forma ideal – sim, porque hoje, mesmo no inverno do sul do Brasil você tem como manter os parâmetros de água (pH, dureza, temperatura etc.) ideais para quaisquer peixes, sejam eles colisas, espadas e acarás bandeiras, juntos num aquário comunitário, sejam eles apenas Discos, num aquário monoespecífico.

Bem…Sonhar não custa e sonhar na frente de um aquário saudável não é difícil. Só pra variar falei demais hoje, assim, findamos por aqui. Mais uma vez agradeço a audiência! Até a próxima!

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