Parte I: espécies exóticas invasoras de água doce.

Aquecimento global, poluição do ar, das águas, do solo, desmatamento…são muitos os assuntos que nos remetem (como cidadãos) à consciência ambiental, não importando onde estejamos incluídos, em qualquer ocupação ou emprego. Meio ambiente desequilibrado reflete na vida humana em desequilíbrio; meio ambiente em risco, também põe em risco a vida humana. Por que esse pensamento? Porque não estamos desligados desse contato, ou de seus reflexos, por estarmos vivendo em nossas casas e apartamentos. Assim, como aquaristas, não estamos eximidos de nosso papel ambiental.

Deixe-me perguntar: Você destina corretamente as lâmpadas do aquário quando elas já não têm mais serventia? As baterias usadas em seus aparelhos, para onde vão? E os potes de ração, lãs de filtro, podas de plantas, substrato do aquário? E sobre as espécies de peixe utilizadas, quando você decidiu não mais tê-las por alguma razão, qual o destino dado a elas? Se para todas as perguntas você possui respostas que têm como intuito preservar o meio ambiente, então, você está no caminho do Aquarismo Responsável – um termo que considero mais próximo das pessoas do que “Sustentável”, pelo simples fato de atribuir responsabilidade àqueles que conduzem uma atividade ou de dar às pessoas a capacidade de se enxergar no contexto tratado. Se você nunca pensou nisso, como sugestão, diria que seria interessante enveredar por esse caminho de reflexão, uma vez que nosso hobby, se malconduzido, pode contribuir para gerar impactos nada inocentes ao meio ambiente.

IMPACTOS AMBIENTAIS
O nascimento da ideia para esta série de podcasts adveio quando bati os olhos numa publicação de 2016 do Ministério do Meio Ambiente – MMA: o livro “Espécies Exóticas Invasoras de Águas Continentais no Brasil”; na capa ilustrada, vi peixes que sempre tive em meus aquários, o que me fez dar atenção ao trabalho. Já na introdução do livro está dito que a segunda maior causa de perda de biodiversidade em todo o mundo – Brasil, inclusive – se deve à invasão de espécies exóticas nos ecossistemas.

Para entender bem o contexto, é melhor decifrar as palavras pra gente começar a entender de um mesmo jeito. Começamos pelo termo “exótico”. Tire da cabeça a ideia de “excêntrico, extravagante e seus sinônimos” e pense em “estrangeiro, exógeno, alienígena”, ou seja, que vem de fora daquela área, onde ele naturalmente não existia. A isso, inclua ainda a capacidade de se estabelecer e reproduzir com extrema habilidade, prejudicando as espécies nativas e produzindo impactos negativos ao ambiente natural. Neste caso, a espécie exótica se torna “invasora”. E para “Águas Continentais”, vamos traduzir para os rios e lagos de água doce, em seus diversos tamanhos. Pronto, agora vamos continuar.
Quando uma espécie invasora começa a se dar bem onde se instalou, normalmente, alguém “paga o pato” (alguém = espécies nativas), o que chamamos de impactos negativos, os quais podem ser diretos ou indiretos. Qual a diferença?

Imagine um bagre africano (ou originário de algum rio de outro continente) inserido em rios brasileiros. Ele é corpulento, brigão, forte e predador de peixes (piscívoro). Quando colocado noutro ecossistema, onde os nativos não estão acostumados a tal comportamento, o bagre, ao ver um peixe menor “dando sopa”, provavelmente não hesitará ou terá dificuldades em comê-lo. Predação seria um impacto direto do invasor sobre o sistema invadido, neste caso, sobre as espécies nativas. Por outro lado, imagine peixinhos pequenos e dóceis de uma bacia hidrográfica estrangeira (ou apenas de outra região geográfica separada), que se reproduzem rapidamente, com fases de maturação dos reprodutores bem precoces. Qual o resultado? Milhares de alevinos e juvenis no rio ou lago brasileiro consumindo a comida outrora destinada às espécies nativas. Essa competição pelo mesmo recurso alimentar é uma forma de impacto indireto sobre as comunidades nativas.

Ocorre que os ecossistemas, ao longo dos milhares anos de evolução, chegaram a um ponto de estabelecer os grandes e micropredadores, os forrageadores, os herbívoros e tantos outras coisas mais que mantêm todos numa espécie de controle ou equilíbrio. Quando uma espécie estrangeira chega, ela não traz consigo o “pacote ecossistêmico” junto com ela, ou seja, os dispositivos ecológicos que controlavam seus hábitos e comportamento no ambiente natural, ficaram lá em seu berço de origem. Caso ela seja uma espécie cuja genética e predisposição sejam aptas a sobrepor características dos novos ecossistemas, temos aí um potencial risco de invasão; tilápias africanas estão entre os melhores exemplos de colonização de novos ambientes.

É certo reconhecer que nem todas as espécies estrangeiras sobrevivem no novo ambiente em que são inseridas. Dentre os motivos, destaca-se a resiliência do local, que é a capacidade do ambiente em reagir e readquirir sua “forma” original após o impacto. Um exemplo interessante é a comparação da inserção da Perca do Nilo (Lates niloticus) nos lagos Victoria e Tanganyika, lagos africanos vizinhos. No primeiro, um corpo d’água largamente antropizado (= forte impacto da civilização humana), a perca castigou a diversidade, enquanto que no segundo, a disseminação do invasor não se firmou. O Tanganyika, menos impactado pelo homem, tem seus nichos tão bem ocupados e estáveis, que não sobra muito espaço para quem vem sem “visto de permanência”.

Assim, cabe aqui amenizar o fato de que a introdução de um peixe de aquário num lago ou rio, por si só, não seria o único e exclusivo motivo de uma invasão propriamente dita. Além disso, ainda destaco que nem sempre as introduções de peixes ornamentais são intencionais ou provocadas por aquaristas. Embora os aquaristas estejam significantemente associados às solturas intencionais, cabe dizer que uma enchente que cobre um tanque de cultivo caracteriza uma introdução não intencional e um programa de governo para controle de pragas (ex: larvas de mosquito) é intencional, mas não promovida por aquaristas. Tudo isso aqui para dizer que existem várias fontes de origem para a chegada de peixes ornamentais exóticos nos ecossistemas brasileiros.

ESPÉCIES ORNAMENTAIS INVASORAS
Antes de mais nada, não é fácil dizer com certeza se uma espécie ornamental está acarretando (ou não) risco ao ambiente. Isso porque a maioria dos estudos feitos no Brasil são voltados para outras áreas e não sobre as espécies ornamentais. Dessa forma, abarcaremos apenas espécies comuns de aquário, que resolvi pinçar da publicação do MMA, para termos ideia do que está presente em nosso meio ambiente. Destaquei apenas aquelas advindas originalmente de outros países, e que hoje podem refletir potencial ou real impacto sobre os ecossistemas aos quais estão inseridas.

Lembro que o fato de não haver substanciais estudos apontando os danos dos peixes ornamentais exóticos ao meio ambiente brasileiro, não descredencia as espécies de assumirem um papel danoso aos ecossistemas. Assim, eu dividiria essa problemática em duas formas: as que têm currículo (em outros países) e as que ainda estão construindo um.
Para as espécies veteranas eu começaria destacando um velho conhecido nosso: o japonês ou kinguio (Carassius auratus), que sozinho reúne potenciais como predar peixes nativos, seus ovos e larvas, assim como atingir a biomassa de algas. Além disso, são conhecidos como sujões, podendo propiciar blooms de algas.

Ainda no hall dos famosos, destacaria personagens inseridos no ambiente para controle de pragas, via programas governamentais, os quais gostaram tanto da nova casa que resolveram ficar: molinésias (Poecilia sphenops, P. velifera. e P. latipina), para as quais existem suspeitas (evidências não atestadas cientificamente) de que possam impactar negativamente a diversidade de espécies por meio do incremento populacional, a exemplo do que faz sua congênere Poecilia reticulata (guppy), esta sim com relatos de ocupação de nicho. Betta splendens, aquele peixinho que se costuma colocar numa solitária, que tratamos o melhor que podemos, com comida de primeira e condicionadores de água, possui registros de excelente predador de invertebrados (especialmente fêmeas). Este peixe e outros, como o plati (Xiphophorus maculatus e X. variatus) e o espada (X. hellerii), têm apontamentos fora do Brasil sobre perda de diversidade e diminuição de invertebrados, tamanho é seu apetite.
Dentre os calouros, elenquei espécies muito comuns em nossos aquários, todavia, sem estudos apontando impactos no Brasil: Amatitlania nigrofasciata (convict, prisioneiro ou acará do Congo) e Pelvicachromis pulcher (Kribensis), representando os ciclídeos que dispensaram nossos minuciosos cuidados com a água; Colisa e Tricogaster (Trichogaster lalius, T. chuna, T. pectoralis, T. trichopterus, T. leerii), Beijador (Helostoma temminkii), Peixe-do-Paraíso (Macropodus opercularis), Barbo Conchônio (Puntius conchonius), Barbo Rubi (P. nigrofasciatus), Bardo Dourado (P. sachsii), Barbo Sumatra (P. tetrazona), Barbo Cereja (P. titteya), Paulistinha (Danio rerio), Tanictis (Tanichthys albonubes) e Dojô (Misgurnus anguillicaudatus). Quantas espécies não? Certamente um destes já passou por um de nossos aquários comunitários, o qual penávamos para manter um pH adequado para englobar mais de uma espécie. Hoje em dia pode ser que estejam com planos de ampliar seus horizontes pelo Brasil a fora.

Cabe ainda mencionar que as introduções não se restringem aos peixes. O gastrópode Melanoides tuberculatus, comum nos aquários, tem na aquariofilia o principal meio de disseminação (não intencional), pois os ovos, juvenis e adultos podem ter sido lançados no ambiente juntamente com o substrato dispensado. Os impactos observados a este organismo se referem à diminuição das populações de outros gastrópodes, como Biompkalaria glabrata e Pomacea lineata. E as plantas? Sim elas estão invadindo. A rabo-de-raposa ou pinheirinho (Ceratophyllum demersum) e elódea (Egeria densa e E. najas), estão registradas e atuam na perda de biodiversidade, pela excelente capacidade competitiva que afeta outras plantas submersas e pela anoxia noturna, matando peixes e outros organismos.

SOLUÇÕES
Nem de longe busco encontrar culpados, a ideia de um podcast como este é sensibilizar as pessoas para um problema que existe. Para não parecer ruim, prevalecendo uma imagem cinza ou duvidosa sobre o hobby, de cara já podemos perceber que os problemas elencados, no que se refere à introdução de espécies exóticas em nossos ecossistemas, são fáceis de se resolver. Fáceis? Fácil sei que não é, mas gosto de pensar que em parte é sim, uma vez que está conosco a responsabilidade de decidir fazer o certo, quando, por exemplo, um peixe passa pelas nossas mãos.

Boa parte dos peixes de aquário, por si só, não são (necessariamente) um risco ao meio ambiente. Vimos que há um conjunto de fatores que contribuem para o sucesso de uma invasão, sendo que as diversas contribuições humanas, somadas, facilitam tais processos negativos. Pensando por esse caminho, podemos ter conosco que “se eu não soltar este peixe na natureza, não haverá risco de eu contribuir com a invasão de ambientes aquáticos” – pensamento simplório, mas de valor efetivo se estiver replicado na mente de cada aquarista.
Hoje dispomos de tecnologia que nos interliga – fóruns, facilidade de contato, informação – e isso nos embasa e empodera para tomar decisões melhores. Se por algum motivo “eu não quero mais esse peixe”: a) posso conversar com o lojista que me vendeu para ver se ele recebe de volta o exemplar; b) posso entrar num fórum de aquarismo e oferecer o peixe para que alguém venha pegá-lo; c) posso ler mais sobre a espécie e, quem sabe, passar a gostar dela depois de ter descoberto coisas legais; d) ver se há projeto de resgate de peixes ornamentais na sua cidade. São muitas opções; as únicas que não valem são as que causariam sofrimento ao animal ou a soltura em ambiente natural.

Eu cresci como aquarista num meio de pessoas que não tratam o peixe como um objeto de adorno, mas sim um animal de estimação. Gente que fica triste quando o peixe morre ou adoece, que quase entra em depressão quando o aquário desanda, ou seja, pessoas que se importam, que se sentem responsáveis pelo bem-estar do aquário. São coisas desse caráter que tento repassar a frente…e é bom saber que no hobby temos cada vez mais gente assim.

Como costumo frisar, o aquarismo é um hobby multifacetado, onde temos a oportunidade de aprender biologia, ecologia, matemática, química e outras matérias, de forma prazerosa. É um espaço em que trazemos a natureza para dentro de casa, para aprender com ela, respeitá-la. Desejo ainda ver filhos e netos (bisnetos etc.) terem a oportunidade de desfrutar da natureza íntegra, saudável, como preconiza a Constituição. Se eu puder contribuir para esse “projeto”, farei! I have a dream!

Obrigado mais uma vez por ficado comigo até o fim! Vamo que vamo! Vejo vocês no próximo!

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