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Saudações aquamigos! Eu sou João Luís, também conhecido como Johnny Bravo, aquarista desde sempre e autor de textos com temática de aquários em revistas especializadas, fóruns e blogs relacionados. Estamos de volta ao Sarlocast, lugar onde aprimoro minha dicção, enquanto tento repassar dicas e informações sobre aquários. E, por falar nisso, hoje trago pra cá um dos assuntos que mais gosto, justamente porque fala da casa dos peixes que mais gosto, que são os ciclídeos africanos… hoje falarei sobre os Lagos do Rift Africano.
Antes de mais nada, você deve ter notado o título pomposo “Rift Africano” uhh, mas as palavras não estão aí só pra embelezar não. O termo “Rift” se refere ao falhamento geográfico do nordeste do continente africano, o qual deu origem aos principais lagos daquelas terras. A palavra, vinda do inglês, significa “fenda” ou “falha”.
“E por que raios o Johnny não usa logo o termo traduzido? Que homi metido a besta!” Imagina eu começar um podcast falando “hoje trago para vocês os Lagos da Falha Africana”? Do jeito que as coisas andam hoje em dia, já iriam me perguntar: “Mas os africanos falharam no quê? Fizeram transposição de rios e perceberam que erraram? Quem foi o responsável? Está preso?”; até eu terminar de me explicar já perderíamos um tempo valioso. Pelo bem da verdade, isso nem envolve humanos, refiro-me às incomensuráveis forças do movimento de placas tectônicas, as quais também atuam por lá.
Sobre os lagos do rift
OK, quando digo “lagos africanos”, estou falando dos três grandes lagos do leste africano, localizados na fenda ou na região do Vale do Rift; são eles: Tanganyika, Malawi e Victoria – existem outros, como o lago Turkana, que mesmo tendo sua fama não os abordarei. Não se tratam, porém, de 3 corpos d’água que podem ser tratados como uma coisa só, diria até que são tão diferentes quanto o são um gato, um cachorro e um hamster… três mamíferos bem distintos entre si. (TIPO, TUDO IGUAL, SÓ QUE NÃO). A diferença começa pela idade: Tanganyka, com algo entre 12 e 9 milhões de anos; Malawi, nascido entre 5 e 2 milhões de anos; e Victoria formado entre 750 e 250 mil anos atrás.
As características da água desses lagos, normalmente alcalinas e duras, assim como o uso da expressão “sais dissolvidos”, levam muitos a pensar que a região já foi invadida por água salgada, vinda dos mares. Não é verdade. A região dos três lagos gigantes foi formada quando já existia o continente africano como é hoje. Como isso aconteceu?
Pra você que não saca bem de placas tectônicas, isso nada mais é do que comparar – a grosso modo – os continentes com pedras de gelo “boiando” na Coca-Cola. As forças existentes dentro da Terra, bem abaixo da crosta terrestre, são capazes de fazer os continentes se moverem. Até aí ok? O movimento de placas, também chamado de tectônica de placas, não é suave como o exemplo do gelo, ele é responsável por terremotos, criação de montanhas como o Himalaia ou os Andes, e também de fissuras no solo, como a Falha de San Andreas, na Califórnia-EUA e, claro, o nosso Rift no leste africano.
No caso do Rift Valley, a placa da Etiópia começou a se descolar da placa africana (onde está praticamente todo o resto deste continente). O movimento criou uma cisão na rocha, abrindo uma fenda gigante que praticamente corta de ponta a ponta o nordeste da África. Ela se bifurca em dois braços: o braço Leste, ou da Etiópia; e o Oeste, ou Albertine. O braço leste atravessa a Somália, a Etiópia, o Quênia e chega à Tanzânia. A falha oeste, começa a se manifestar entre a República Democrática do Congo e Uganda, desce ao sul, tangendo Ruanda, Burundi, Tanzânia, Zâmbia, Malawi e Moçambique. Nesta região é que se encontram os lagos Malawi e Tanganyka – um detalhe, como característica desse processo de formação, que rompe a rocha desde a superfície, ambos os lagos são compridos e profundos. O lago Victoria, por sua vez, encontra-se num abaulamento do terreno, existente entre os dois braços (Etiópia e Albertine) e, por isso, não é tão profundo como o Malawi ou Tanganyka, mas, em contrapartida, é o mais largo dos três (área superficial).
Além, disso, a região é sismicamente ativa. Vulcões famosos ali se encontram, como o Monte Kilimanjaro, e boa parte das rochas dali é de origem vulcânica. A partir desta informação, é possível entender sobre a química da água dos lagos: as características provêm da própria geologia da região, ricamente constituída de rochas como mármores, silicatos cálcicos, basaltos e uma série de rochas básicas e ultrabásicas. Os lagos têm um sistema de escoamento feito por rios, todavia, a saída mais expressiva se dá a partir da evaporação. Visto isso, podemos logo perceber que em tal processo sai água, mas ficam os sais; isto, somado aos milhões de anos de acúmulo de minerais, resulta nas peculiares condições encontradas.
E são justamente tais condições de água que nos obrigam a preparar a água do aquário para receber os ciclídeos africanos dos grandes lagos. Atingir pH, KH (dureza carbonatada) e GH (praticamente magnésio e cálcio dissolvidos) adequados para os parâmetros dos lagos, não é tarefa fácil para boa parte das águas que chegam em nossas casas; na maioria dos casos será necessária a aplicação de sais próprios para Ciclídeos Africanos (carbonatos e bicarbonatos). Ressalto a importância de diferenciar estes produtos do sal marinho ou, pior, do sal de cozinha. Embora haja necessidade de sais dissolvidos na água dos CAs, o fato não os transforma em peixes de água marinha ou sequer salobra; os sais provindos de marcas confiáveis trazem níveis balanceados dos elementos necessários, presentes no ambiente natural. O uso de certas rochas e substratos podem promover tais condições, porém, não são mecanismos eternos e deve-se ficar de olho, para que no momento que não forem mais eficazes, a aplicação do sal correto deve começar. Há ainda quem faça o uso de sais a partir de fórmulas caseiras, com boa eficácia, mas isto implica em estudar ou se basear em referências confiáveis. O que dificilmente se obterá neste tipo de fórmula serão elementos importantes, que não o cálcio e o magnésio, que vêm em quantidades reduzidas (elementos-traço).
“Chegada” dos Ciclídeos Africanos que conhecemos hoje
Eu até acredito que tenha gente que ao ouvir “ciclídeos africanos” como designação para um grupo de peixes pense que todos se encaixam num mesmo modelo e que essas “frescuras” de KH, GH etc. é para quem não tem mais o que fazer. Porém, o aquarista responsável vai mais a fundo nas informações e se surpreende com a variedade desses peixes. Dependendo da fonte consultada, os peixes da família Cichlidae estão estimados numa grandeza entre 1.300 a 1.900 espécies. Só nos lagos do Leste Africano, existe algo na ordem de 1.000 espécies; estão estimados para o Tanganyika cerca de 190 ciclídeos endêmicos (carinhosamente chamados de “tangs”); o lago Victoria conta com umas 300 espécies endêmicas e o Malawi com cerca de 400, também endêmicos.
“Certo, legal, estes são os números atuais, mas sempre foi assim?” Na verdade, não. A especiação começou no mais velho dos três gigantes, o lago Tanganyika, um reservatório ancestral de evolução, há pelo menos 8 milhões de anos e radiou para o Victoria e o Malawi. É um processo complexo e longo, com ancestrais de características específicas ocupando rios e lagos, até chegarem onde estão hoje. O resultado é que centenas de espécies surgiram no último milhão de anos, o que representa a maior taxa de especiação conhecida entre os vertebrados.
Embora se considere que o Tanganyika seja o responsável por influenciar todas as linhagens de CAs daquele continente, nos tempos atuais, para encurtar a história, lidamos com ancestrais comuns mais recentes. Explico: para os peixes que estão hoje lá nos lagos, a filogenia mostra que há um ancestral para os ciclídeos do Malawi (malawians), um para o Victoria e pelo menos três para o Tanganyika. Não são processos simples, nem previsíveis. Para nossos CAs, a radiação nos lagos se deu em, no mínimo, três fases distintas, cujas forças seletivas envolvem basicamente morfologia e comportamento. No Malawi, elas se apresentam bem claras, boas para a explicação… vamos ver algo sobre elas.
A primeira etapa (chamada de “Radiação Primária”) foi a escolha do ambiente. Nela os peixes decidiram se habitariam as rochas (rock-dwellers ou mbunas – no idioma Tonga, do norte do Malawi, que significa “peixe das rochas”) e a areia (sand-dwellers ou também não-mbunas), com a formação de algumas linhagens. Essa primeira divisão ocasionou certas mudanças de comportamento e morfológicas, incluindo mudanças ecológicas, formato do corpo, padrões de pigmentação, comportamentos reprodutivos e preferência por habitat (tal especiação não é específica dos ciclídeos, e sim comum a outros grupos de peixes e vertebrados em geral).
A Radiação Secundária é marcada pela habilidade de lidar com o alimento. Houve, nesta fase, o refinamento do aparato bucal, no qual os ciclídeos se especializaram na coleta e no processamento da comida. A comida deixou de vir da boca direto para o estômago, sendo agora testada, movida e trabalhada pela mandíbula (maxila e pré-maxila) antes de seguir para o estômago, detalhe que permitiu aos Ciclídeos atingir um grande espectro de nichos, geralmente ocupados por muitas diferentes famílias, senão ordens, dentro de um ecossistema. Essa é considerada a “grande chave” que possivelmente garantiu o êxito dos ciclídeos, a qual marcou vantagens competitivas sobre os demais organismos e facilitou a colonização dos ambientes lacustres da África.
Por fim, na fase de Radiação Terciária, a grande marca foi a seleção sexual realizada pelas fêmeas sobre os machos. Ao que tudo indica, trata-se de um processo de extrema rapidez, que foi além da preferência delas por características como o tamanho e a agressividade deles. A pressão reprodutiva desta fase resultou na diversificação da coloração dos machos, enquanto a maioria das outras características morfológicas permaneceram praticamente inalteradas. E, realmente, quando falamos em cores no aquarismo de água-doce, o primeiro patamar de beleza está reservado aos peixes do lago Malawi, os quais só perdem mesmo para os marinhos.
Nesses longos ciclos de evolução, os ciclídeos mostraram-se hábeis a sobreviver e passaram por inúmeros testes que a natureza impôs. Nesse contexto de provações, cabe destacar uma característica que, independentemente do modo de reprodução da espécie em questão, fez a diferença para a família como um todo: o cuidado parental. No mundo dos ciclídeos, há uma grande variedade de métodos de comportamento, sempre muito eficientes para atender o meio ambiente circundante. Podemos até mesmo iniciar algumas elucubrações, pensando, por exemplo, que, por ser o Malawi um lago em pleno processo de especiação, todos os malawians são incubadores bucais, salvo algum lapso de memória. Isso, talvez, porque não tenha havido tempo para que as espécies se “acomodassem” em seus nichos. Já os tangs, habitantes do lago mais antigo, onde houve tempo para que “arrumassem a casa”, se dividem melhor, com peixe incubadores bucais e também aqueles que colocam ovos adesivos em rochas e tocas.
Mas chega de generalizar, vamos adentrar os lagos. Na verdade, vamos só molhar os pezinhos, pois seria impossível explorar 3 lagos num só podcast.
Lago Malawi
Com uma área próxima de 30 mil km2 (29.600 km²), o lago tem 560 km de comprimento e 80 km de largura máxima, sendo que a profundidade máxima é de 700 m. Não é nada incomum você ouvir a denominação “Niassa” para esse lago, já que existem disputas geopolíticas na região, e os demais países que o circundam (Moçambique e Tanzânia) não querem que o lago seja conhecido pelo nome de apenas um dos países: Malawi.
Nas águas quimicamente duras do lago, o pH fica em torno dos 8.5-8.6, e é neste lugar que encontramos o maior número dos famosos peixes coloridos, que só perdem para os peixes marinhos. São gêneros do Niassa: Pseudotropheus, Maylandia, Labidochromis, Labeotropheus e Melanochromis, dentre os mbunas mais comuns; dentre os Haps (nome derivado do gênero Haplochromis que antigamente englobava a maior parcela das espécies nesta categoria): Otopharinx, Protomelas ou Sciaenochromis) e os Peacocks (gênero Aulonocara), são peixes que, em sua maioria, preferem zonas abertas e sua dieta é omnívora.
Lago Tanganica
Maior e mais largo que o Malawi, o Tanganica tem quase 33 mil km2 de área (32.900 km²), 673 km de comprimento – é o lago mais longo do mundo – e 50 km de largura e (PODE FICAR IMPRESSIONADO) profundidade máxima de 1.470 m (o segundo mais profundo do mundo, depois do Lago Baikal na Sibéria). Quatro países o cercam: República Democrática do Congo, Burundi, Tanzânia e Zâmbia. Suas águas são as mais duras e de pH mais elevado 8.66-9.06. A variedade de nichos ocupados é maior: shell dwellers (habitantes das conchas), dos gêneros Neolamprologus e Lamprologus, as ágeis Cyprichromis leptosomas, o intrigante Altolamprologus calvus, as simpaticíssimas Julidochromis spp., os narcisistas Neolamprologus daffodil, os majestosos Cyathopharinx furcirfer… muitas opções. Nesse tipo de aquário, você pode trabalhar o layout para permitir que mais espécies habitem o mesmo volume. Por serem mais especializados, ecologicamente falando, não é incomum você ver leptosomas nadando na superfície, shell dwellers cuidando de sua cama de conchas, ‘julies’ entrando e saindo de fendas nas rochas e ainda algum peixe de meia água nadando por ali.
Lago Victoria
É o que menos possui espécies para o aquarismo, quando comparado aos demais CAs dos lagos. O Lago Victoria conta com uma área de superfície de quase 70 mil km2, tornando-o o segundo maior lago de água-doce em toda Terra e o nono em termos de volume de água. Como não ocupa uma fenda, e sim um abaulamento do terreno, é um lago raso, com não mais que 84 m de profundidade (média de 40 m). Ele se encontra entre 3 países: Tanzânia, Uganda e Quênia.
Enquanto falamos com orgulho dos lagos, quanto às maiores taxas de radiação de espécies de ciclídeos, lamentamos ser justamente no Victoria o pior dos mundos para um ciclídeo viver. Não é exagero desta vez. O lago sofre um dos mais impactantes processos antrópicos (ação humana), os quais resultam na perda de espécies, com notória pressão sobre os ciclídeos. O aporte de esgoto não tratado (nutrientes em excesso – nitrogênio e fósforo), despejos industriais e domésticos, lixiviação dos solos agricultáveis e seus agrotóxicos para dentro do lago e pesca predatória estão entre os principais malefícios que debilitaram a capacidade de reação do Victoria.
O lago adoeceu e não foi capaz de reagir contra a invasão de peixes, proporcionada pela própria ação humana, que visava a melhoria da produção da aquicultura e da pesca esportiva. Julga-se que inúmeras de CAs tenham desaparecido pela ação dos invasores. Dentro dos principais vilões estão elencadas 4 espécies de tilápias (Coptodon rendalli, C. zillii, Oreochromis niloticus e O. leucostictus), as quais chegaram para competir pelos recursos com as espécies nativas e também para hibridação com a tilápia nativa (Oreochromis esculentus). Ainda assim, nada se compara à introdução da Perca do Nilo (Lates niloticus), um peixe que pode atingir o comprimento de um homem adulto e que tem hábitos extremamente vorazes.
De forma geral, aquários montados para o Lago Victoria são de águas alcalinas e duras, sendo que o pH deve ficar entre 8,0 a 8,6. Visto que, por vezes, você encontrará sais de ciclídeos que tenham no rótulo “Victoria e Malawi”, sugiro seguir as instruções de uso, pois certamente a quantidade para este será menor do que para o Malawi. Por que? Simples, porque os parâmetros do Victoria são menos altos.
Nem adianta falar muito dos peixes deste lago, pois são raríssimos no aquarismo brasileiro. Assim, decidi destacar 2 deles, um muito comum e outro que conheço apenas de fotos: Astatotilapia latifasciata (Zebra Obliquidens; não é endêmica do lago Victoria) e Pundamilia nyererei (Zebra nyererei um dos CAs mais belos do Victoria) (pelo visto eles gostam do nome zebra).
Tudo que posso dizer é que os ciclídeos africanos do rift são pra lá de cativantes. Estão acessíveis nas lojas e nem todas as espécies são caras. Espero que, com o prosseguimento destes podcast, possamos trazer mais conteúdo, contando, por exemplo, como se comportam os diferentes tipos de CAs…e mais, espero que você esteja aqui para conferir.
Sem mais delongas, me despeço, agradecendo demais sua audiência! Um forte aquabraço e até o próximo podcast! Inté!
Com Bravo de Bravura, e não de Braveza, Johnny Bravo (João Luís), escreve para revistas especializadas e para o blog da Sarlo há um cadim de tempo. Nessa jornada Julioverniana, após 20 Mil Léguas de textos, agora ele também desenvolve os roteiros para os vídeos de chamada do Sarlocast, onde você pode ouvir a sensual voz desse aquaman (tradução: homem de aquários).