Hoje trago um dos três maiores lagos africanos vinculados à memorável falha geológica do leste africano, que comumente vemos sob o nome Rift Valley: o lago Victoria.

Normalmente negligenciado por muitos dos aquaristas que criam ciclídeos africanos, que só têm olhos para os dois mais famosos, Malawi e Tanganyika, e cujos peixes são mais facilmente adquiridos, o lago Victoria também carrega muitas belezas e tristezas, as quais tentarei explorar aqui. O lago promete não decepcionar. Preparado para adentrar seus mistérios? Então, bora lá!

Identidade, CPF e Comprovante de Residência

O lago Victoria é, simplesmente, o mais largo dentre todos os lagos tropicais e o segundo de água-doce, com uma área de aproximadamente 69 mil km2 (maior que países como Holanda, Suíça ou Croácia), numa região que se situa a cerca de 1.130 m de altitude, entre os países: Tanzânia, Uganda e Quênia. A despeito desse título, especialmente quando comparado aos outros dois irmãos gigantes, ele é considerado um lago raso, com profundidade máxima em torno dos 80 m (para você poder comparar, saiba que o Malawi tem 704 m e o Tanganyika 1.470 m) e média de 40 m.

Seria ele um bebezão, por se tratar de ser o mais novo dos três. Com uma idade aproximada de 400 mil anos (para comparação: Malawi com 9 milhões e Tanganyika com 12 milhões de anos), esse “menino” difere nas características de seu berço. O lago Victoria percorre um sistema muito antigo de drenagem, que flui de leste para oeste e que foi alterado pelo soerguimento do terreno, mais especificamente no que concerne ao braço da falha Albertine. Ok, vamos por partes, buscando entender um pouquinho mais sobre o contexto geológico do local.

A região onde se localizam os três gigantes não foi sempre como é hoje e os lagos se formaram quando já existia o continente africano. O início se deu quando a placa da Etiópia começou a descolar da grande placa africana, cujo movimento criou uma cisão na rocha, abrindo uma fenda imensa que praticamente corta de ponta a ponta o nordeste da África e é exatamente isso o que se chama rift (ou falha). A falha, por sua vez, bifurca-se em dois braços: o braço leste, ou da Etiópia (atravessa a Somália, a Etiópia, o Quênia e chega à Tanzânia); e o oeste, ou Albertine (começa a se manifestar entre o Zaire e Uganda, desce em direção ao sul, tangendo Ruanda, Burundi, Tanzânia, Zâmbia, Malawi e Moçambique). Em termos de localização, já melhorou, concorda?

Dentro do rift é que se formam os dois lagos mais conhecidos pelos amantes dos CAs: Malawi e Tanganyika. “E o Victoria?” Pois bem, para aqueles que achavam até aqui que o Victoria ficava numa fenda, sinto dizer-lhes que não fica. O lago foi formado sobre um abaulamento do terreno, ocasionado pelo soerguimento montanhoso dos dois lados (leste e oeste), ou melhor, ele está entre os dois braços da falha, mencionados anteriormente. Isto explica por que não é tão profundo como o Malawi ou Tanganyika e também o porquê de ser o mais largo dos três.

Finalizando a explicação, é legal entendermos que os lagos participam de diferentes bacias hidrográficas: o Victoria pertence à bacia do rio Nilo, enquanto o Malawi e Tanganyika, da bacia do rio Congo.

Parâmetros da Água

A região é sismicamente ativa e boa parte das rochas dali é de origem vulcânica. Isso nos dá a oportunidade de entender sobre a química da água dos lagos, extremamente alcalina, afastando hipóteses que dizem que houve contato com o mar no passado, algo que não procede. As características provêm da própria geologia da região, ricamente constituída de rochas como mármores, silicatos cálcicos, basaltos e uma série de rochas básicas e ultrabásicas. Os elementos constituintes dessas rochas acumularam-se ao longo dos tempos, devido ao parco sistema de escoamento diante do volume de aporte de água, sendo que a perda de água se dá em maior grau pela evaporação.

No caso do Victoria, a água chega por 17 tributários (rio Kagera é o maior), embora juntos não cheguem a 20% do total de água recebida, deixando os méritos para as chuvas (em torno dos 1.200-1.600 mm anuais). Curiosidade: um estudo de 1986 apontou 1.850 mm de chuva e uma evaporação de 1.595 mm para aquele ano.

Quanto aos parâmetros, a temperatura varia anualmente entre 23 e 26 ºC nas águas próximas ao fundo e de 23 a 28 ºC nas superficiais, com variações maiores quando tangendo à costa. O pH fica entre 7,0 e 8,6, o GH entre 11 e 17 e KH 16 e 19, cujas variações estão suscetíveis ao aporte de chuvas e às condições de deterioração atuantes nos dias de hoje.

Ressalto que, em aquários, não procuramos atuar nos limites ou criando variações amplas, mas sim dentro de padrões médios e recomendados pela maioria dos aquaristas, portanto o uso de produtos como condicionadores e filtros serão requeridos para o controle dos parâmetros – lembre-se que falamos de um recipiente pequeno (aquário) e não de um lago, sendo que as condições podem degringolar rapidamente, afetando todo o sistema.

Diversidade biológica

A África, desde os primórdios da vida, concentra um fantástico pool genético, uma reserva latente para a geração de milhares de espécies, tais como identificamos hoje. Em relação aos ciclídeos, nesse continente estão mais da metade das espécies conhecidas e se é assim agora, imaginem antes, durante os eventos de diversificação de espécies. E, por falar nisso, especialmente no que concerne aos CAs, cabe destacar que o lago Tanganyika, com cerca de 200 espécies de tangs, divididas em 12 tribos, influenciou os lagos Victoria e Malawi no povoamento, fornecendo haplocromídeos (os coloridinhos) ancestrais a eles e dando um status de meio-irmãos aos três.
Interessante observar que, enquanto os CAs atuais do Tanganyika possuem três ancestrais, os dois outros lagos possuem apenas um (origem monofilética). Isso se explica, por questões geomorfológicas, onde o primeiro tem desenhado em seu fundo três bacias ou concavidades e os demais apenas uma. Tais “piscinas” foram os locais onde a água ficou acumulada durante os períodos de seca prolongada, como as glaciações.

Curioso notar que o Victoria é o mais jovem dos três grandes lagos e, ainda assim, possui uma impressionante diversidade: algo em torno de 300 espécies endêmicas (originadas no local), dentro de uma estimativa de 500 – o Malawi tem mais de 400 (o local mais diverso em ciclídeos de todo o mundo). Pensando aqui… se a geomorfologia do Victoria não é igual ao do Tanganyika, o qual tem 3 sub-bacias (a grosso modo), que quando secaram (no passado remoto) formaram 3 lagos menores, como o Victoria faria sua própria diversificação? Lagoas satélites (que seriam lagoas próximas que conseguissem preservar água)? Intervenção alienígena? Trata-se de uma evolução desde a constituição do lago ou é muito mais recente?

As lagoas satélites foram descartadas. Giorgio Tsoukalos ainda não se manifestou sobre o tema de alienígenas envolvendo ciclídeos. O que nos resta é focar na evolução recente. Os registros apontam um nível mínimo de baixa d’água em 65 m abaixo do que se conhece hoje, relacionado à última glaciação (15 a 17 mil anos atrás) – para que você lembre, a profundidade máxima do lago é de cerca de 80 m, o que denota que uma enorme parte do lago deve ter secado completamente. No último século, as variações são em torno de 2 m e vinculadas aos teores de evaporação e chuvas. Dessa forma, temos um período evolucionário extremamente curto e estamos presenciando um processo vívido de especiação, onde se acredita que o que temos hoje tenha surgido de 12.400 anos para cá. É absolutamente incrível! O Victoria é o segundo lago com maior diversidade de ciclídeos, perdendo apenas para o Malawi.

Numa descrição natural e prévia aos processos de degradação do lago, podemos inferir que o Victoria costumava ser dominado por ciclídeos haplocromídeos, com um tamanho médio-padrão entre 7 e 11 cm (peixes adultos). Quem já é do ramo associa rapidamente a palavra haplocromídeo com o gênero Haplochromis, que, em termos taxonômicos, enquadra-se no entendimento de que é um táxon inchado, tal como é Cichlasoma, carecendo de aprofundamentos e revisões.

Boa parte dos peixes classificados como Haplochromis é encontrada no lago Victoria e bacia do rio Nilo, mas não restritos a estes; outros corpos d’água também possuem espécies sob tal gênero, como os lagos Kivu, George, Albert, Edward etc. Eles dividem-se em peixes de águas abertas (offshore) e também em rock-dwellers (tal qual são os mbunas do Malawi), possuindo hábitos alimentares específicos. Vejamos uns exemplos (em nível de gênero em sua maioria):

Tipo de AlimentaçãoTáxon
Rock-dwellers raspadores de algasNeochromis e Mbipia
Rock-dwellers insetívorosPundamilia, Lithochromis e Paralabiochromis
InsetívorosHaplochromis brownae, H. nubilus, Paralabiochromis e Psammochromis
PiscívorosHarpagochromis e Prognathochromis
Comedores de caramujosPtyochromis, Astatoreochromis, Labrochromis, Platytaeniodus e Paralabiochromis
DetritívoroEnterochromis
Predadores de zooplâncton offshoreYssichromis e Haplochromis longirostris
Observação: peixes do Victoria e adjacências têm os nomes mantidos em Haplochromis pela Fishbase, até que a revisão esteja completa, no entanto, na vanguarda das pesquisas, muito está sendo feito e inúmeras espécies ganham suas publicações, as quais aproveitei para mostrar aqui.

Poluição e impactos – as agressões ao Gigante

Nesse quesito, espero que o nome do lago venha a significar algo e que Victoria se aplique a algum cenário futuro. Digo isso porque, quando nos referimos ao grande lago, precisamos estar cientes que ele vem sofrendo ataques de todos os lados, resistindo bravamente às investidas humanas (com cicatrizes profundas). Acredito que possa destacar algumas das principais agressões, as quais estão associadas ao crescimento populacional explosivo, ocorrido a partir da década de 90: despejo de agrotóxicos e nutrientes da agricultura às margens, aporte de esgoto sem tratamento, sobrepesca e introdução de espécies exóticas.

A despeito da natural baixa transparência da água, quando comparada aos lagos irmãos, a turbidez da água foi acentuada, sendo de cerca de 3 m, em regiões mais afastadas das margens e em maiores profundidades, e entre 20 cm a 60 cm, nas zonas mais rasas. Isso para os ciclídeos, que possuem na visão um instrumento-guia de significativa importância, representa muito, inclusive, a quebra de barreiras reprodutivas e a consequente hibridação de espécies. Ressalto que num lago novo como o Victoria, cuja especiação ocorreu tão recentemente, o nível de resiliência das populações é baixo, ou seja, elas são ainda tão aparentadas e tão pouco especializadas (diferente do que ocorre no Tanganyika), que as forças impactantes têm maior chance de comprometer definitivamente o ecossistema, sem chance de reação ou retorno ao estado anterior.

Um dos casos mais sérios de ameaça às espécies endêmicas foi a introdução da Perca do Nilo (Lates niloticus) em idos das décadas de 50 e 60. Trata-se de um peixe altamente predador, de importância tanto comercial quanto esportiva, que pode atingir até 2 m de comprimento e pesar 200 kg, sem contar que pode viver até 16 anos. Ele tem origem na ecorregião Etíope, compreendendo os rios Congo, Níger, Volta e Senegal, assim como os lagos Chad e Turkana. As populações do peixe ascenderam na década de 80, ocupando toda a extensão do lago e afetando drasticamente os haplocromídeos, especialmente em abundância, ameaçando aproximadamente dois terços das espécies de ciclídeos.

Sem exagerar, poderia dizer que um “passarinho” nos contou algo sobre o Victória, dando-nos noções dos reflexos dos impactos nas comunidades de peixes. Há uma ave muito simpática e estudada por aquelas bandas, um martim-pescador (Ceryle rudis), que tem sido usado como “termômetro” para se avaliar o que o lago sofre. Uma das primeiras observações é que o tamanho médio dos peixes capturados para o consumo dela, normalmente ciclídeos haplocromídeos, tem sido reduzido, assim como a composição da dieta tem mudado.

Seria muita ousadia fazer um trocadilho para chamar o invasor de “Perda do Nilo”? O intuito seria associar as perdas que o Victoria tem sofrido com a chegada do peixe de outra região. Bem, em nosso mundo nem tudo são flores, não é mesmo? Por essas e outras que não se assume mais 500 espécies para o lago e sim mais perto de 300, pois acredita-se que os impactos tenham suprimido inúmeras espécies, que jamais conheceremos. O lago Victoria é uma realidade. Espero mesmo que as pessoas se sensibilizem e que de alguma forma possam ajudá-lo, sensibilizando outros, tendo ideias, sei lá.

E assim terminamos mais uma história, esta sem final feliz. Agradeço pela audiência! Nos vemos no próximo Sarlocast. Até lá!

Carrinho

Topo